Por Maurício de Novais Reis*
Rastreando a história da psicanálise desde suas origens em solo tupiniquim (entenda-se: brasileiro), pode parecer até mesmo surpreendente, à primeira vista, a descoberta de que a primeira mulher a divãnear (entenda-se: fazer análise) na América Latina tenha sido justamente uma mulher negra, que, posteriormente, tornou-se também a primeira pessoa, neste país, a produzir uma dissertação sobre relações raciais; e a primeira psicanalista não médica do Brasil, cujas contribuições, tanto para a institucionalização da psicanálise quanto para a instalação de estudos acerca das relações raciais no campo sociológico, têm se mostrado de relevância essencial no processo de construção da sociedade brasileira que reconhece a heterogeneidade étnica constituinte da nação brasileira.
Filha de um afrodescendente chamado Teófilo Bicudo e da imigrante italiana Joana Leone, Virgínia Leone Bicudo foi a primeira psicanalista brasileira sem formação médica, tendo sido analisanda (entenda-se: paciente, como dizem os psicanalistas ipeístas) da primeira analista credenciada pela Associação Internacional de Psicanálise (IPA), no Brasil, a alemã Adelheid Lucy Koch.
Virgínia não estabeleceu no corpus teórico de suas contribuições ao campo sociológico as relações entre negritude e psiquismo. Todavia, podemos inferir que essas relações encontravam-se intrinsecamente estabelecidas no próprio psiquismo da pesquisadora, posto que nada passa despercebido pelo inconsciente. Falta sempre algo à verdade para que seja dita, expressa, na sua completude psicológica. Ana Paula Musatti Braga, em artigo recente, esclarece que naquela época havia a ilusão da democracia racial, uma vez que o Brasil era “um país que se acreditava um paraíso racial”. O que, obviamente, não coadunava com a realidade da situação.
A própria Virgínia, em entrevista concedida em 1983, expressa a forma como fora tratada na escola, durante a infância. Ela diz: “Eu fui criada fechada em casa, quando saí foi para ir à escola e foi quando, pela primeira vez, na escola, a criançada começou: negrinha, negrinha. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido. Então eu levei um susto”.
As experiências vividas certamente produzem marcas indeléveis no psiquismo do sujeito, que, cedo ou tarde, transbordarão. Há casos em que os transbordamentos acontecem em formato psicopatológico, em outros, em forma de sublimação, identificação, lapsos, etc. Todas as experiências vividas pela psicanalista refletem na sua caminhada profissional, embora tenha havido, à época, um processo de branqueamento das suas relações familiares e sociais. “Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição”, disse Virgínia Bicudo em entrevista de 1998.
Virgínia Bicudo faleceu em 2003, deixando uma profunda reflexão no que se refere às interlocuções possíveis entre psicanálise e relações étnico-raciais. Surpreendente mesmo é o fato de a trajetória intelectual da psicanalista Virgínia Bicudo não ser plenamente difundida entre os psicanalistas e sociólogos brasileiros.
*Mauricio de Novais Reis é Graduado em Pedagogia, Graduado em Filosofia, Especialista em Teoria Psicanalítica, Professor no Colégio Estadual Democrático Ruy Barbosa e Coordenador Pedagógico na Escola M. Prof. Sheneider Cordeiro Correia. Contatos: (73) 99928-0460 / (73) 98885-3463.