Um mergulho nos recifes ‘invisíveis’ de Abrolhos

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“Universo marinho do Banco de Abrolhos é maior que o Espírito Santo”

Ao redor do barco, nada à vista além de água, 360 graus. Caímos no mar equipados e descemos agarrados à corda da âncora, balançando na correnteza como se fôssemos pipas ao vento.

Vinte metros para baixo, encontramos o que procurávamos: grandes cabeços de recife coralíneo, cobertos de esponjas coloridas e encrustados de corais-cérebro, com frades, badejos, budiões e outros peixes recifais se refugiando em suas reentrâncias. Uma paisagem submersa típica do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, no sul da Bahia. Com uma diferença importante: não estamos dentro do parque.

Estamos 2 quilômetros ao norte, em águas não protegidas, e os recifes à nossa frente são parte de um enorme mosaico de ecossistemas coralíneos formados milhares de anos atrás e conhecidos há gerações por pescadores locais, mas só recentemente ‘descobertos’ por cientistas e ambientalistas – que agora estão embarcados numa corrida para recuperar o tempo perdido e proteger esses ecossistemas, essenciais à sobrevivência da biodiversidade e da atividade pesqueira que se alimenta dela.

Há cinco anos pesquisadores vêm extrapolando os limites

Para mapear e estudar a composição dos 48 mil quilômetros quadrados do Banco de Abrolhos que estão fora da zona de proteção do parque. Um universo marinho maior que o Espírito Santo, onde a plataforma continental (a borda submersa do continente) se estende a até 200 quilômetros da costa, criando um ambiente de águas rasas e mornas que acolhe a maior diversidade de espécies marinhas do Atlântico Sul.

Como resultado desse esforço, capitaneado pela organização Conservação Internacional (CI) e um grupo de oito instituições que compõem a chamada Rede Abrolhos, financiada pelo Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (Sisbiota), vários tesouros biológicos já vieram à tona, resgatados das profundezas de Abrolhos por meio de imagens de sonar, robôs submersíveis e expedições de mergulho. Entre eles, mais de 8 mil km² de novos sistemas recifais, a maior parte deles não visíveis da superfície, em áreas de 20 a 50 metros de profundidade. Chamados recifes mesofóticos ou de meia-luz.

“É o maior banco de corais do Atlântico Sul e só conhecíamos 5% dele”, diz o biólogo Guilherme Dutra, diretor do Programa Marinho da CI, que trabalha há mais de dez anos em Abrolhos. “Sabíamos que havia muitos recifes fora do parque, mas ninguém tinha mapeado isso até agora.” Com esse olhar mais profundo, a área conhecida de ocorrência de recifes no Banco de Abrolhos cresceu 20 vezes, comparado ao que se conhecia até 2008, restrito, basicamente, ao que era visível da superfície.

Abrolhos é como um fóssil vivo gigante

Os principais construtores e decoradores desses recifes são os corais-cérebro, do gênero Mussismilia, que formam estruturas alongadas em forma de cogumelo, conhecidas como chapeirões. O registro fóssil mostra que eles eram comuns no mundo todo 15 milhões de anos atrás, mas, hoje, só existem no Brasil. Uma espécie específica, a Mussismilia braziliensis, só ocorre na costa da Bahia. “Abrolhos é como um fóssil vivo gigante”, diz o biólogo americano Les Kaufman, professor da Universidade de Boston e cientista marinho da CI. “Que pode estar a caminho de virar um fóssil morto, se não tomarmos as medidas necessárias para protegê-lo.”

Pescaria. A alegria de descobrir os recifes é acompanhada de uma tristeza, ao constatar que a quantidade de peixes presente neles está bem abaixo do esperado para esse tipo de hábitat. Quem frequenta esses recifes há muito mais tempo que os pesquisadores são os pescadores, que se aproveitam desses hábitats privilegiados como campos férteis para sua pescaria – praticada, muitas vezes, de maneira ilegal e perigosa, por mergulhadores conectados a compressores de ar, que passam horas debaixo d’água caçando com arpões.

Aqui deveria estar cheio de dentão

É o ambiente perfeito para eles, diz o biólogo Matheus Oliveira Freitas, ao voltarmos para o barco, referindo-se a um dos peixes mais visados pelos caçadores.

Aluno de doutorado da Universidade Federal do Paraná e pesquisador associado da CI, Freitas há anos coleta e examina peixes de várias regiões do Banco de Abrolhos para tentar descobrir onde, quando e com que periodicidade cada uma das espécies se reproduz. Informações cruciais para o gerenciamento sustentável da pesca na região.

Ele procura, principalmente, pelos pontos de agregação reprodutiva, locais específicos onde grandes cardumes se formam periodicamente – apenas em determinadas luas do ano – para desovar seus gametas simultaneamente. Para isso, Freitas examina as gônadas dos peixes pescados, o que lhe permite dizer se o animal é macho ou fêmea, se está em ‘repouso’, se desovou recentemente ou está prestes a desovar. Depois relaciona isso com os pontos geográficos e o conhecimento tradicional dos pescadores, juntando pistas sobre o ciclo reprodutivo das espécies.

‘É a caixa preta dos peixes’

Também mede e pesa cada peixe e retira amostras de tecido, que podem ser analisadas quimicamente para saber do que o peixe se alimenta.

Por fim, coleta os otólitos, duas ‘pedrinhas’ de carbonato de cálcio que ficam embutidas em um compartimento cheio de líquido entre a cabeça e a espinha dorsal do peixe, funcionando como um órgão de equilíbrio, equivalente ao ouvido interno humano. “É a caixa preta dos peixes”, compara Freitas. Fatiados e analisados sob o microscópio, os otólitos têm anéis de crescimento que podem ser contados para estimar a idade do peixe, como se faz com os anéis dos troncos de árvores.

“Não tem como fazer gestão pesqueira sem conhecer a biologia dos peixes”, justifica o pesquisador.

Assim como não dá para conservar ‘às cegas’, sem conhecer a fundo a distribuição e o funcionamento dos ecossistemas que se pretende proteger. Esse é o objetivo prático das pesquisas, segundo Dutra: gerar conhecimento científico para embasar uma proposta eficiente de expansão da rede de áreas protegidas no Banco de Abrolhos.

Uma proposta, ressalta Dutra, que seja boa para peixes e seres humanos, beneficiando a pesca e atenuando conflitos com atividades econômicas, como a exploração de petróleo e gás. Para isso, os dados biológicos e minerais gerados estão sendo cruzados com dados econômicos e sociais, para produzir uma espécie de zoneamento ecológico-econômico de Abrolhos. “Temos várias alternativas de proteção, mas qual delas oferece o melhor custo benefício? É isso que queremos saber”, afirma Dutra. Herton Escobar/AE