UFSB Ciência: Hidrelétricas reduziram biodiversidade do Rio Madeira, na Amazônia, confirma pesquisa

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A importância das usinas hidrelétricas ultrapassa o fornecimento de energia ao sistema nacional. Essa forma de gerar eletricidade em escala compõe 75% da matriz nacional, mas sua capacidade instalada oferece baixa mitigação dos seus efeitos no ambiente, especialmente na Amazônia. As barragens fragmentam o ecossistema ao impedirem a migração de peixes, alterando as reservas pesqueiras que as comunidades ribeirinhas consomem para subsistência e renda, dentre outros efeitos ambientais. Um estudo mostrou o impacto das usinas de Jirau e Santo Antônio nas populações de peixes no rio Madeira, compreendendo uma área entre os estados do Amazonas e de Rondônia.

Cichla ocellaris 11O artigo Impacts of Hydroelectric Dams on Amazonian Fisheries: Assessing Functional Attributes in the Madeira River foi publicado na revista científica River Research and Applications e é assinado por Ana Laura Monteiro de Souza (UFMS), Rogério Fonseca (UFAM), Rangel Eduardo Santos (UFSB), Raniere Garcez Costa Sousa (UNIR), Felipe Micali Nuvoloni (CFCAM/UFSB), Isys Nathyally de Lima Silva (UFAM), Karen Sayuri Takano (UFAM), Fabricio Berton Zanchi (CFCAM/UFSB). O estudo contou com fomento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM). Os autores integram o Núcleo de Pesquisas em Ecossistemas Tropicais (NuPEcoTropic), liderado pelo professor Fabrício Berton Zanchi e com a pesquisadora Ana Laura Monteiro de Souza e colaboradores.

Pescado no mercado de Humaita. Foto Rangel SantosO Rio Madeira é o maior afluente do Amazonas e sua alta biodiversidade de cerca de 1.300 espécies de peixes é vital para as comunidades ribeirinhas. Os dados coletados indicam uma imensa redução de cardumes de grande valor alimentar e econômico para a população à margem daquele rio, após a instalação das usinas. Essas perdas não são apenas números técnicos, como comenta o professor Fabrício Zanchi, do Centro de Formação em Ciências Ambientais (CFCAM/UFSB): “Elas comprometem a segurança alimentar de milhares de pessoas. Na região amazônica, o consumo médio de peixe ultrapassa 30 kg por habitante por ano, sendo mais do que o dobro da média nacional, que é de 12 kg/hab./ano. No caso de Humaitá, com uma população de cerca de 57 mil pessoas, a redução de mais de 9 mil toneladas anuais de pescado representa uma perda estimada de aproximadamente 166 gramas de peixe por pessoa, por semana”.

O cientista aponta que, nesse cálculo de base semanal de consumo a partir de dado anual, é preciso considerar que há épocas de defeso (quando a pesca de certas espécies é proibida) e períodos de baixa captura provocado por variações sazonais, causando uma redução drástica nas capturas efetuadas pelos ribeirinhos e povos originários da bacia. “Essa é uma perda não somente de proteína acessível para famílias durante meses e que muitas vezes não têm outra fonte alimentar equivalente, mas também de subsistência e comércio para aquisição de outras fontes alimentares”, detalha o cientista, que indica os dados de outro trabalho do grupo (Santos et al, 2018).

20 anos de informações

14815352018 4b34dd5173Para entender como as barragens modificaram a composição das reservas pesqueiras no rio Madeira, a equipe de cientistas comparou dados dos período pré- e pós-construção das usinas hidrelétricas (UHEs), inauguradas em 2011. O foco recaiu nas informações de desembarque pesqueiro de 2000 a 2019 de duas colônias pesqueiras, um a montante (antes) (Z-2, em Guajará-Mirim) e outro a jusante (depois) (Z-31, em Humaitá) das usinas, identificando os atributos funcionais das espécies quanto aos padrões migratórios e de habitat e a produção registrada nos desembarques diários em cada porto.  

Centrar a análise nos atributos funcionais das espécies — como tipo de migração (local, regional e de longa distância) e habitat preferencial (bentopelágico, pelágico e demersal) foi uma escolha decisiva para identificar os grupos mais vulneráveis ao impacto das barragens. E de forma temporal, a comparação entre os períodos anterior e posterior à construção revelou quedas expressivas nos desembarques pesqueiros.

A avaliação das mudanças na pesca considerou as quantidades capturadas de espécies, classificadas de acordo com padrões de migração de  habitats e a profundidade na qual vivem, ao longo de 20 anos. Assim, foi possível mapear as diferenças nas populações a partir das quantidades registradas de pescado. Para isso, os dados de desembarque pesqueiro foram avaliados considerando a classificação de espécies por atributos funcionais. Quanto à migração, as espécies foram organizadas entre local, regional, longa distância e sedentária. Em relação ao habitat, no caso, as profundidades nas quais as espécies vivem, os peixes foram organizados nos grupos pelágico (que vivem na coluna de água até 200 metros de profundidade), bentopelágico (vivem na zona de transição entre a coluna de água e o fundo) e demersal (mais profundos), conforme dados do FishBase e literatura científica.

Para essas classificações e com esses dados, a equipe aplicou testes estatísticos (Mann-Whitney) e análise NMDS (non-metric multidimensional scaling), combinados com o uso do índice de dissimilaridade de Bray-Curtis e empregando análise computacional no software R Studio. Enquanto o teste Mann-Whitney favorece a análise dos dados de captura entre os períodos anteriores e posteriores à instalação das usinas, o uso da análise NMDS serviu para avaliar as mudanças nas composições das populações das espécies de peixes no recorte temporal pesquisado.

A crise não é apenas ambiental

dourada brachyplatystoma rousseauxii guia e cuidados ficha tecnicaOs dados mostram que houve queda no número de populações migratórias no período de 20 anos de dados analisados, com os danos sendo piores a montante das usinas. A queda média foi de 60% na colônia Guajará-Mirim, antes das usinas, um impacto de menos 51.63% de espécies de migração regional e de menos 8.67% das espécies de migração de longa distância. O artigo destaca a redução de 91% de quantidade da dourada (Brachyplatystoma rousseauxii) e de 92,78% do piaú (Schizodon fasciatusLeporinus spp.), ambas espécies de alto valor comercial.

Após as usinas, na colônia Z-31, a redução total foi de 41,49% de espécies, destacando a queda de 85.50% da presença de espécies migratórias regionais e de 81.45% das espécies de migração de longa distância. Um resultado importante é que as únicas espécies que apresentaram aumento na representação foram as sedentárias a jusante das usinas. Esse dado aponta para mudança ecológica, em que os peixes migradores não conseguiram transpor as barragens para concluir seu ciclo reprodutivo. Isso, portanto, indica que os peixes que têm seus ciclos reprodutivos na mesma área foram menos impactados. Outra informação resultante do estudo é a redução da população de peixes com escamas e migratórios e o aumento de espécies de peixes carnívoros. 

A redução geral de pescado tem peso na renda regional, pois espécies de grande importância comercial na região amazônica, como o curimatã (Prochilodus scrofa), jatuarana/matrinxã (Brycon amazonicusB. melanopterus e B. falcatus) e o tucunaré (Cichla spp.), todos bentopelágicos, tiveram o maior declínio nos desembarques pesqueiros. Dentre os peixes pelágicos, a piranha (Serrasalmus sp.) e a pirapitinga (Piaractus brachypomus) tiveram a maior redução na pesca. 

Com isso, apontam os autores do estudo, as barragens transformaram o rio Madeira de um ambiente lótico, ou seja, de correnteza, para um ambiente lêntico, de água represada. Essa mudança prejudicou os peixes migratórios e favoreceu os sedentários. Os sistemas que permitiriam a passagem de peixes foram ineficientes, afetando espécies como os bagres, migrantes de longa distância, causando a redução da quantidade de pescado de espécies de alto valor comercial, indicando que esses peixes tiveram queda nas populações. Em consequência, os pescadores passaram a capturar maiores quantidade de peixes de menor valor comercial. Isso é mais uma pressão sobre o ecossistema, piorando os resultados em todos os âmbitos de sustentabilidade.

“A crise, portanto, não é apenas ambiental. É uma crise que trata-se de uma violação indireta do direito à alimentação dos povos ribeirinhos e povos tradicionais, que dependem dos peixes migratórios durante o ano todo para manter suas práticas culturais e garantir o mínimo nutricional”, afirma o professor Fabrício.

O que fazer diante do problema

piau schizodon fasciatus largeOs dados obtidos são evidências científicas úteis para aprimorar as políticas públicas e os projetos de usinas hidrelétricas na Amazônia, incluindo a sugestão de incluir os atributos funcionais das espécies de peixes da região no desenho dos sistemas de passagem. Outras propostas são o desenvolvimento de estratégias de conservação mais eficazes para espécies migratórias, contemplando e protegendo os ciclos reprodutivos, como a restauração da conectividade dos rios, o manejo adaptativo com participação das comunidades, subsídios e compensações as comunidades afetadas, bem como a revalorização do conhecimento local para entender os efeitos desta modificação na bacia.

O professor Fabrício Zanchi argumenta que, diante do atual cenário da biodiversidade do Rio Madeira, a principal medida seria a implementação de um sistema de transposição de peixes que seja realmente eficiente e adaptado às características do rio. “O Madeira possui um alto fluxo de sedimentos e nutrientes, além de uma vazão elevada (31.704 m³/s). Um sistema capaz de lidar com essas condições, e que permita a transposição das diversas espécies, possibilitaria a estabilização — e, gradualmente, a recuperação — da biodiversidade aquática. Outro fator importante é a transformação do regime do rio de lótico para lêntico após a construção das barragens, o que afeta os processos ecológicos. Ajustar a vazão do rio, promovendo uma maior mobilização de sedimentos e nutrientes e melhorando o substrato, é uma ação que poderia contribuir positivamente para a recuperação dos cardumes. Combinado isso e um sistema de transposição eficaz permitiria que os peixes migrassem da jusante para a montante, completando seu ciclo reprodutivo, que é fortemente dependente dessa conectividade longitudinal, e que foi fortemente afetado e alterado pelas usinas”.

Outro aspecto do problema é como essa mudança ambiental afetou a população ribeirinha, muito dependente da pesca. Com essa atividade econômica e de subsistência prejudicada, outros prejuízos podem ocorrer. Para Fabrício, é imprescindível uma reeducação da atividade pesqueira local. Trataria-se de uma adaptação à nova realidade até que a fauna aquática se estabilize, de modo a permitir que os peixes completem seu ciclo reprodutivo. “Nosso estudo mostrou uma concentração da pesca de determinadas espécies a jusante, provavelmente devido à sua dificuldade em transpor a montante, o que aumenta sua vulnerabilidade e levou a uma sobrepesca das espécies na área, não permitindo sua coleta rio acima e nem que posteriormente elas retornassem após completar o seu ciclo reprodutivo. Por isso, criar novas métricas de pesca que permitam uma boa coleta de pescado, mas que ainda proteja os mais vulneráveis é indispensável no momento”, explica o cientista. 

Para além de reorganizar a pesca, será preciso dar apoio à população que teve grande redução na fonte de proteínas e de receita: “Incentivar alternativas sustentáveis de geração de renda, diversificar as atividades econômicas e fomentar programas de segurança alimentar e capacitação são ações que podem reduzir a pressão sobre os recursos pesqueiros e promover a recuperação dos estoques”, finaliza Fabrício. Por Heleno Rocha Nazário / Jornalista – Mestre em Comunicação Social (PPGCOM/PUCRS) e Coordenador do Setor de Jornalismo – ACS

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