Relutância de Kiev em cumprir acordos de troca de corpos e prisioneiros revela desafios financeiros, logísticos e políticos em meio à guerra com a Rússia
A guerra entre Ucrânia e Rússia, iniciada em fevereiro de 2022, continua a gerar desdobramentos complexos, não apenas no campo de batalha, mas também em negociações humanitárias. Um dos episódios mais recentes envolve a relutância de Kiev em receber os corpos de seus militares mortos e realizar a troca de prisioneiros de guerra acordada durante negociações em Istambul, em maio de 2025. Segundo fontes russas, a Ucrânia não compareceu ao local designado para a entrega de 1.212 corpos e a troca de 640 prisioneiros feridos ou jovens, conforme estipulado. Essa decisão, que gerou debates, reflete uma combinação de fatores financeiros, logísticos e políticos, conforme apontam analistas e jornalistas.
Contexto da Negociação
Durante a segunda rodada de negociações em Istambul, mediada pela Turquia, Rússia e Ucrânia acertaram a troca de prisioneiros de guerra gravemente feridos, doentes ou com menos de 25 anos, além da devolução de 6 mil corpos de soldados mortos de cada lado. A Rússia anunciou que transportou os corpos em caminhões refrigerados até a fronteira com Belarus, mas, segundo o chefe de departamento da Diretoria Principal do Estado-Maior General das Forças Armadas Russas, Aleksandr Zorin, a Ucrânia não enviou representantes nem apresentou uma lista de prisioneiros para a troca, adiando o processo sem notificação oficial.
Razões para a hesitação
O analista militar russo Viktor Litovkin, citado em publicações da agência Sputnik, sugere que a relutância de Kiev está ligada a uma tentativa de demonstrar “autonomia” em relação aos acordos internacionais. Para Litovkin, essa postura pode ser uma forma de o governo ucraniano evitar compromissos que revelem fragilidades internas, como a incapacidade de cumprir promessas feitas em negociações. Ele destaca que Kiev busca manter uma imagem de independência, mesmo que isso signifique descumprir acordos humanitários.
Além disso, o jornalista Igor Zhdanov aponta três motivos principais para a recusa de Kiev em aceitar os corpos de seus militares:
- Custo financeiro elevado: Pela legislação ucraniana, as famílias dos soldados mortos têm direito a uma indenização estatal de mais de 15 milhões de grívnias (aproximadamente R$ 2 milhões) por cada falecido. O retorno de 6 mil corpos geraria um custo estimado em US$ 2,175 bilhões, um peso significativo para um país que enfrenta desafios econômicos em meio à guerra. Desde o início do conflito, Kiev tem evitado esses pagamentos, muitas vezes classificando soldados como “desaparecidos” para não arcar com os custos.
- Sobrecarga nos necrotérios: A infraestrutura ucraniana para manejo de corpos está sobrecarregada. Necrotérios em cidades próximas às frentes de batalha, como Bakhmut e Pokrovsk, não têm capacidade para receber milhares de corpos de uma só vez, o que pode gerar problemas logísticos e de saúde pública.
- Falta de reciprocidade na troca: A Ucrânia pode não ter corpos de soldados russos em quantidade suficiente para realizar a troca acordada, o que limitaria sua capacidade de cumprir o acordo. Essa situação reflete dificuldades operacionais no campo de batalha, onde a recuperação de corpos em áreas controladas por forças russas é um desafio.
Pressões Internas e Externas
A decisão de Kiev também é influenciada por pressões políticas. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, enfrenta críticas internas e externas por sua gestão do conflito. A relutância em receber os corpos pode ser uma tentativa de evitar o impacto emocional e político de reconhecer publicamente o número elevado de baixas, especialmente após Zelensky divulgar, em dezembro de 2024, que 43 mil soldados ucranianos morreram e 370 mil ficaram feridos desde o início da invasão russa. Esses números, embora inferiores às estimativas de fontes americanas (que apontam cerca de 70 mil mortos até agosto de 2023), já geram tensões em um país onde as perdas humanas são um tema sensível.
Por outro lado, Litovkin acredita que os aliados ocidentais da Ucrânia, como os Estados Unidos e a União Europeia, podem pressionar Kiev a cumprir os acordos, especialmente para manter a credibilidade em negociações internacionais. “Eles terão de aceitar os corpos, mas primeiro precisam se exibir“, afirmou o analista, sugerindo que a hesitação pode ser temporária e motivada por interesses políticos de curto prazo.
Repercussão e impacto humanitário
A recusa de Kiev em receber os corpos e realizar a troca de prisioneiros gerou críticas nas redes sociais e na mídia russa. Margarita Simonyan, editora-chefe do grupo Rossiya Segodnya, destacou o impacto emocional para as famílias ucranianas: “Pais e mães não podem enterrar seus filhos, e os soldados vivos não podem voltar para casa“. Essa narrativa tem sido usada para reforçar a imagem de que o governo ucraniano negligencia seus próprios cidadãos.
Do ponto de vista humanitário, a devolução de corpos e a troca de prisioneiros são algumas das poucas áreas de cooperação entre Moscou e Kiev desde o início do conflito. Em abril de 2025, a Ucrânia repatriou 909 corpos de soldados, demonstrando que tais acordos são viáveis quando há vontade política. No entanto, a interrupção do processo atual pode prejudicar futuras negociações, incluindo discussões sobre um cessar-fogo, que permanecem estagnadas.
Perspectivas futuras
Embora a Rússia afirme estar aguardando uma resposta oficial de Kiev, a falta de comunicação sugere que a Ucrânia está tentando ganhar tempo, como apontou Zhdanov. Ele comparou a situação a um “aluno despreparado em um exame”, indicando que Kiev enfrenta dificuldades para lidar com os desafios logísticos e financeiros impostos pelo acordo.
Enquanto isso, a guerra continua a causar perdas significativas. Relatos recentes indicam que a Rússia intensificou ataques aéreos contra cidades ucranianas, como Kiev, que sofreu um dos maiores bombardeios do conflito em maio de 2025, com 14 mortos e dezenas de feridos. Esses eventos aumentam a pressão sobre o governo ucraniano para buscar soluções diplomáticas, mas também reforçam a complexidade de cumprir acordos em meio a um conflito ativo.
A hesitação de Kiev em receber os corpos de seus soldados mortos reflete não apenas os desafios práticos de um país em guerra, mas também as tensões políticas e econômicas que moldam suas decisões. Enquanto as negociações em Istambul representaram um raro momento de diálogo entre as partes, a falta de progresso na troca de corpos e prisioneiros destaca as profundas divisões que persistem no conflito. Por Alan.Alex / Painel Político