O “usuário” de drogas (quem porta drogas para uso pessoal privado) pratica uma conduta normalmente maligna para ele mesmo, mas não comete nenhum crime. Basta entender que crime constitui uma ofensa (lesão ou perigo real ou concreto de lesão) a bens (jurídicos) de terceiras pessoas. Isso se chama “princípio da alteridade” (que significa ofensa ao outro ou aos outros, isto é, a terceiros). O “usuário” de drogas (enquanto se limita a isso) danifica sua própria saúde (em maior ou menor grau, conforme a droga e sua quantidade), não a saúde física de terceiras pessoas. Ao STF não compete dizer quem é traficante ou usuário. Isso é problema do legislador. O STF deve decidir se o usuário é ou não um criminoso. Se o problema é de saúde privada e pública ou se é uma questão de polícia e Justiça.
A questão central é a seguinte: terá coragem a Máxima Corte de enfrentar as “massas rebeladas ultraconservadoras” e tomar mais uma decisão contramajoritária (como fez com a “união homoafetiva”, células-tronco, aborto anencefálico, marcha da maconha, inconstitucionalidade do regime fechado nos crimes hediondos, penas alternativas no tráfico etc.)? Eis a questão. Julgará com a emoção – de acordo com a emotividade reinante na nossa pungente oclocracia, que é a democracia das massas – ou com a razão?
Seguirá os exemplos dos países mais consequentes no assunto (praticamente toda Europa, incluindo Portugal, Espanha, Holanda etc.), que encaram o “usuário” de drogas (tanto quanto o alcoólatra, enquanto não pratica nenhum crime) como um problema de saúde pública e privada? Ou se dobrará ao populismo punitivo irracional norte-americano de 1971 (quando Richard Nixon declarou “guerra às drogas”, desencadeando uma das políticas públicas mais ineficazes e mais desastradas de toda a história da humanidade)?
Nos Estados Democráticos de Direito (esse é o modelo organizacional escolhido pela nossa Constituição, ao menos no papel), o Estado não tem o direito de usar o direito penal (de ultima ratio) para corrigir moralmente os humanos “considerados” erráticos (se é que isso fosse possível). Não existe razoabilidade em usar o poder punitivo estatal mais pesado contra quem faz uso da sua liberdade para fumar, beber imoderadamente, ingerir açúcar, sal ou gorduras em excesso, tomar remédios sem prescrição médica, usar a internet de forma vulgar, não ler um livro sequer (instrutivo) durante o ano todo, urinar fora do vaso sanitário, praticar sexo para fins não-reprodutivos, não usar (incorretamente) camisinha etc.
A lei de drogas de 1976, seguindo a lógica do Código Penal de 1940, previa pena de prisão para o portador de drogas para uso pessoal. A Lei dos Juizados Criminais (1995) permitiu aplicar penas alternativas no lugar da prisão. A Lei 10.409/2002 evoluiu para tratar o usuário como não-criminoso. Com a atual Lei de drogas (11.343/2006), a situação ficou confusa: aboliu-se a pena de prisão para o usuário, mas é muito frágil (e demasiadamente subjetiva) a distinção entre o traficante e o usuário. Daí os abusos constantes (e a superlotação carcerária, muito acima do crescimento populacional do País). Continua.
*Luiz Flávio Gomes, jurista e coeditor do portal “Atualidades do Direito”. Estou no [email protected].