Severino

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Na metade do século passado, o município de Ilhéus, no sul da Bahia, experimentava invejável prosperidade. Tudo por conta da cultura do cacau que pontificava na pauta de exportação dos produtos agrícolas nacionais.
Os barões do cacau na cidade concentravam riqueza e poder em suas mãos. Praticamente eram eles quem escolhiam o prefeito, o delegado, o juiz e (não se duvide) até o bispo de Ilhéus. Compunham um tipo de clube fechado, com informais, porém, rígidas regras de associativismo. Essa agremiação viria a ser convertida, mais tarde, na Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac).
Muitos dos produtores de cacau ilheenses, na verdade, eram migrantes atraídos à região pela corrida do cacau no início do século passado.
Assim, chegou a Ilhéus o comandante Severiano, experiente marinheiro de carreira. Tornou-se amigo do capitão de corveta Athaídes Besoto, quando compartilharam tempos embarcados servindo à patrulha costeira.
Logo que se retirou à reserva, o capitão Athaídes, baiano de Caravelas, não titubeou em investir na lavoura de cacau, em Ilhéus. Trouxe consigo bom capital e, como sócio ajudante, o fiel amigo Severiano.
Comprou e ampliou propriedade já em primeira safra, em Uruçuca. Severiano aprendeu o ofício agrícola e as manhas da cacauicultura. Com o aproveitamento de conhecimentos (tecnologias) adquiridos por leitura e conversas, melhorava substancialmente, a cada ano, a produtividade da fazenda.
Passados cinco anos, o capitão Athaídes faleceu envenenado por picada de cobra jaracuçu. Não reclamada por qualquer possível herdeiro, a fazenda terminou caindo no domínio completo de Severiano.
Nesse tempo, Severiano já havia constituído família e gozava do respeito e das regalias dos membros da confraria dos coronéis do cacau. Adquiriu mais duas fazendas nas proximidades de Itabuna. Rico e poderoso, não tardou a se autointitular “comandante”. Circulava por todo lado sempre vestindo branco bem alvejado, sapatos também brancos e quepe do tipo militar. Mesmo sem divisas nem galões, gostava de ser visto como oficial da Marinha.
Visitava, ou melhor, tomava conta de suas fazendas com incomparável esmero. Conferia e prestava assistência à saúde dos empregados, das plantas e dos animais.
Visto assim, o comandante parecia um cidadão perfeito. Porém, guardava ocultamente o terrível desejo de compartilhar seu leito com adolescentes. Em cada uma de suas fazendas havia uma escolhida, na faixa entre catorze e dezesseis anos. Os momentos de alcova se passavam com muita discrição, mesmo sendo de conhecimento e velada permissão dos pais.
Assim que assumiu a fazenda de Uruçuca, ainda solteiro, engravidou Dolores, linda jovem de 15 anos, filha de um casal de empregados da fazenda. Insatisfeito e aborrecido com a gravidez, convenceu Dolores, a fazer o aborto em Salvador. Na verdade, já contratara o jagunço Libório para levá-la à capital e dar-lhe sumiço. O jagunço retornou a Ilhéus para receber pelo serviço feito. Aos pais de Dolores, Severiano informou ter a menina resolvido não mais voltar à região e viver a vida na capital.
A mulher que, mais tarde, se casara formalmente com o comandante Severiano também era jovem, engravidada por acidente, sobrinha de um confrade cacauicultor. Com ele, teve quatro filhos, em intervalos aproximados de um ano.
Como era costume, na época, os endinheirados enviavam seus filhos para estudar (científico e curso superior) em Salvador. Geralmente, eram acolhidos e orientados por senhoras do interior que alugavam vagas e quartos com esse fim, incluindo alimentação.
Uma das bem recomendadas pensões de estudantes em Salvador era a de dona Sinhá, preferida pelos ilheenses. Em seu sobrado, acomodava moços no andar de cima e moças no térreo.
Dona Sinhá era uma jovem viúva e mãe de Jairo, um belo rapaz de fina educação e estudante de direito. Fazia-se amigo e companheiro de todos. Geralmente, acompanhava os novatos para fazer matrícula nos estabelecimentos de ensino, comprar material escolar, uniforme e até mesmo para assistir à missa dominical e divertir nos fins de semana.
Foi para a pensão de dona Sinhá que o comandante enviou seus filhos. De início, o casal mais velho, Laura, com 16, e Hermes, com 15 anos.
Apesar de terminantemente proibido de flertar ou namorar com as hóspedes, Jairo não resistiu aos encantos de Laura. No início era um disfarçado flerte. Mais tarde um namoro às escondidas fora do ambiente da pensão.
Ao tomar conhecimento desse romance, dona Sinhá chamou Jairo às falas e, em ar de profunda irritação, repreendeu-o e ameaçou remeter de volta a Ilhéus os filhos do comandante, vender a pensão e mudar-se da cidade.
Jairo obedeceu, mas cobrava diariamente da mãe melhor justificativa para tanto desespero.
Dona Sinhá chamou-o e, impondo-lhe sigilo, disse:
– Meu nome, você sabe, é Dolores. Você e Laura são filhos do mesmo pai, o comandante Severiano.
– Como assim, minha mãe? Na minha certidão de nascimento, consta Libório como sendo meu pai.
– Prometi jamais revelar isso. Adquiri esta casa com o dinheiro que Libório, contratado para me matar, recebeu pelo suposto serviço feito. Fiz questão de colocar em sua certidão de nascimento o nome dele como se fosse seu pai.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opção. [email protected]