Por Roberio Sulz*
Coronel Egas fazia parte dos que não confiavam plenamente na retidão do médico. Mas, pelos serviços prestados à comunidade, reconhecia-o como indispensável.
Certo dia, logo após a madrugada, bateram na porta da residência-consultório do dr. Gaspar três enviados do Coronel Egas, exigindo que os acompanhasse até o garimpo para atender a Gracinha, a amante do Coronel em trabalho de parto. Relataram que a coitada, ainda adolescente, urrava de dor há mais de um dia, sem conseguir dar à luz seu primeiro filho. O Coronel também penava agoniado. A parteira contratada dizia que a criança estava atravessada e nada podia fazer.
Dr. Gaspar, ouviu o relato. Nunca fizera um parto por cesariana como sugeria o quadro. Pior seria fazê-lo pela primeira vez num garimpo, sem confiável assepsia para tal procedimento. Mas, não convidado, sim convocado por quem decidia as coisas com balas e gatilho, não hesitou em arrumar sua maleta de atendimento e seguir com os mensageiros.
Embora aberto a prosa, mesmo com estranhos, dr. Gaspar evitava receber divulgadores de remédios. Conhecia bem essa gente. Temia ser reconhecido como não diplomado e se tornar vítima desse segredo quando transformado em negócio.
Todavia, não contou com a sorte. Dia anterior à sua missão de atender a amante do Coronel Egas, no garimpo, aparecera-lhe no consultório o representante de fármacos, Zenon que não tardou a descobrir a identidade médica enganosa de Gaspar. Prometeu-lhe sigilo, mas, entre uma e outra dose de traçados diversos, terminou abrindo o segredo aos convivas de copo.
Foi como se caísse uma bomba atômica de indignação entre os presentes. Rapidinho, o estoque de bebidas de Afonsinho caminhava ao fim. Falaram cobras e lagartos do dr. Gaspar. Deram-lhe os piores adjetivos. Uns recomendavam sua expulsão sumária da vila, debaixo de taca. Outros, prisão, desmascaramento e apedrejamento em praça pública. Sugeriram até incendiar sua residência e consultório.
Logo, formaram-se patrulhas de voluntários para a execução das penas. Providenciaram cordas e arame farpado para amarrá-lo no troco do ipê da praça, pedras grandes e pequenas para estilingues, relho molhado para a surra, querosene para o incêndio etc.
Mas, considerando que qualquer providência só poderia ser efetivada com a aprovação superior, marcharam em turba até a residência do Coronel Egas. Dar-lhe-iam ciência do crime de falsificação profissional do médico local e obteriam autorização para o linchamento público. Estavam certos do consentimento, conhecedores dos humores negativos do Coronel para com o falso médico. Decepcionaram ao saber de sua ausência.
Não satisfeitos, seguiram para a residência-consultório do dr. Gaspar a fim de encarcerá-lo preventivamente na pocilga de Ramon. Por lá, também souberam de seu deslocamento para o garimpo levado por seguranças do Coronel Egas.
Essa informação suscitou ilações do tipo:
– O Coronel soube antes de nós e já levou o criminoso para pagar seus pecados no garimpo!
– Vai jogá-lo num daqueles buracos da mina e deixá-lo morrer de fome!
– Vai usá-lo como burro de carga para morrer transportando cascalho!
– Aprisionou-o antes que fugisse! Isso sim!
Houve quem, diferentemente, dissesse que o doutor, sabendo-se perdido, se acoitara a implorar misericórdia e proteção ao Coronel.
– Não conseguirá! – Completavam.
Enquanto isso, no garimpo, dr. Gaspar lidava com o difícil parto de Gracinha. Experimentava tudo que sabia mais alternativas que pudesse evitar a cesariana. Aliviava a parturiente das terríveis dores, aplicando-lhe analgésicos em doses não comprometedoras para uma provável cesária. Confortava-a com toalhas úmidas, orações, palavras de fé e consolo. Tentando colocar a criança na posição correta, recorreu a massagens e exercícios físicos que aprendera de uma parteira do Paraná e com índios locais. Horas de labuta.
Já anoitecia, quando, por sorte ou efeito dos procedimentos e orações, a criança nasceu de parto normal, sem trauma. Deu o primeiro choro e teve cortado seu umbigo com a maestria e experiência de um obstetra. O Coronel que assistia a tudo sorriu e deixou rolar lágrimas em seu rosto duro e seco. Abraçou demoradamente dr. Gaspar. Abriu uma envelhecida cachaça armazenada em moringa de madeira, serviu-a com requinte e apreço a si e ao médico. Celebrou com esfuziante alegria a chegada de seu mais novo rebento, de pronto, nomeado Gaspar. Coisa jamais esperada!
No ambiente do garimpo, sob autorização, produziu-se uma festiva algazarra, com tiros, fogueira, danças, comes e bebes.
Dia seguinte, o próprio Coronel, ladeado por numerosos seguranças e empregados, fez questão de acompanhar dr. Gaspar até a vila.
Na chegada, nova salva de tiros, vinda do secto acompanhante. Interpretada pelos pretensos carrascos, no alvoroço, como sinal de vitória sobre um criminoso aprisionado.
Na praça, ainda montado, Coronel Egas desconheceu aquela turba apetrechada de cordas, arames, pedras e chicote. Pediu silêncio e falou:
– Quero agradecer e homenagear dr. Gaspar. Aperto sua mão em sinal de respeito e admiração. É nosso querido médico. Com conhecimento, competência e dedicação ao povo desta vila tem aliviado muitas dores e salvo vidas. Nossa saúde tem dois tempos, um triste antes do dr. Gaspar, outro feliz depois dele. Esta praça pública, doravante, será chamada Praça dr. Gaspar. Demos um grande “viva” para ele!
Em coro, todos, especialmente mulheres e crianças, gritaram “Viva dr. Gaspar!”
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Pensador por opção. roberiosulz@uol.com.br