Por Roberio Sulz*
Pelas décadas iniciais do século passado ainda era comum a presença nos vilarejos interioranos de praticantes da medicina sem diploma acadêmico. Eram chamados médicos farmacêuticos, práticos em medicina, “esculápios” nas missões sanitaristas do governo imperial etc.
Muitos, sentindo-se pouco prestigiados, quando comparados aos doutores diplomados, se proclamavam médicos de verdade. Forjavam em gráfica um falso diploma bem emoldurado para ostentá-lo na parede frontal do consultório. Contavam com a precária fiscalização profissional para não serem incomodados.
Gaspar era um desses. Antes de se intitular médico, residir e estabelecer consultório numa pequena vila no interior de Goiás, fez por onde obter informalmente uma generosa dose de habilidades e conhecimentos médicos.
Sem condições financeiras para frequentar o curso superior de medicina, empregou-se como representante divulgador de medicamentos numa indústria do ramo em Curitiba/PR, sua terra natal. Obcecado por aprender coisas da medicina, lia todas as bulas que lhe chegavam. Sanava seu desconhecimento consultando dicionários, livros, almanaques e outras fontes, inclusive, o velho boticário Almir Coelho, feito seu amigo pela elevada frequência com que era acionado para elucidar termos técnicos das bulas.
Terminou conhecido nos cantos e recantos do Paraná. Fazia-se íntimo de médicos, dentistas, farmacêuticos, práticos e formados. Proseava sem restrição com parteiras, curandeiros, rezadeiras e até pajés. Das parteiras, aprendeu como assistir parto e cuidar de recém-nascidos.
Ampliou suas atividades e seu saber quando estendeu seus serviços a fornecedores de material para gabinetes dentários, clínicas e hospitais, incluindo instrumental cirúrgico, equipamentos e aparelhos para salas de cirurgia.
Chegou a dominar técnicas cirúrgicas. De início, apenas presenciando; mais tarde, participando ativamente de operações; das mais simples como o lancetamento de furúnculos e panarícios, até a extração de dentes, apêndices e vesícula biliar. Suturas pós-cirúrgicas e de reparo em lesões, assim como imobilizações ortopédicas, não lhe eram novidade.
Instalado numa pequena vila de Goiás, Gaspar era tido e havido como médico de verdade. Cobrava consulta apenas dos bem de vida, fazendeiros, agiotas, comerciantes, donos de garimpo etc. Dos pobres, nada pedia em pagamento. Todavia, não lhe faltavam presentes e agrados, como galinhas, patos, leitões, frutos, doces, artesanatos e outros mimos.
Amealhou um montão de afilhados, compadres, comadres e amigos. Sua presença era disputada para almoços familiares, aniversários festas e reuniões.
Apesar desse ardente carinho popular, alguns fazendeiros e garimpeiros não lhe manifestavam querência. Geralmente por ciúmes, principalmente da parte dos casados ou amasiados com mulher bonita. É que costumavam passar dias gerenciando seus interesses na zona rural ou nos garimpos, longe de suas esposas e amásias. A invejável beleza física do médico ensejava perigo e risco à pulada de cerca das “cabritas” de fidelidade pouco confiável.
De fato, dr. Gaspar, descendente de italianos, possuía feições e físico do tipo europeu. Esbelto, cabelos castanhos sempre alinhados com têmporas parcialmente grisalhas, sempre bem limpo, barbeado, simpático, exibia sem esforço gestos amáveis com quem dele se aproximasse. Ainda que solteiro e descompromissado, era reconhecidamente respeitador e religioso.
Contudo, para apimentar o desconforto dos preocupados com possíveis chifres, os contumazes fofoqueiros de língua viperina insinuavam ter provas de furtivos encontros do médico com dondocas admiradoras nos cantos e moitas da escuridão, paisagem típica de uma vila rudimentar sem eletricidade, nem iluminação pública. Havia até quem afirmasse ser Dagmar – a teúda e manteúda do Coronel Fulgêncio – sua maior freguesa nas ausências do coronel-garimpeiro.
Os rapazotes que faziam ponto e barulho no bar de Afonsinho também morriam de inveja do dr. Gaspar e seu potencial para “pegar” quem desejasse. Juntavam-se aos inseguros machões da vila para urdir artimanhas contra a reputação do dr. Gaspar. De quebra, cobiçavam as mulheres que imaginavam desejosas de aventuras.
Para tanto, encharcavam de cachaça Maneco – um sem teto meio doido quando sóbrio e doido e meio quando bêbado – para, do alto de uma mesa na calçada do bar, vociferar os últimos fuxicos locais, dando nomes, lugares, datas e até maneiras das traições. Mentirosas, para uns. Verdadeiras ou com algum fundo de verdade para os que delas quisessem tirar proveito.
Ninguém tinha coragem era de falar do Coronel Egas, o mais poderoso e temido não só do local como da região. Não dispensava uma arma exposta na cintura e o secto de capangas bons de tiro. Contava-se, nunca ter deixado desafeto em pé, principalmente quando o ciúme lhe queimava os miolos. Sua esposa-matriz residia na vila cuidando de cinco filhos.
Dono de quatro garimpos, em cada um deles tinha uma manceba, guardada por jagunços de fé para evitar aproximação de estranhos. A mais recente e jovem do plantel – seu especial xodó – era Gracinha, com dezesseis anos, já em gravidez avançada.
Com valentia e dinheiro, Coronel Egas comandava um batalhão de jagunços. Fazia-se temido e respeitado. Assumia informalmente os poderes de delegado, prefeito e juiz do local. Poderoso, ditava regras sociais e exercia forte e inconteste liderança comunitária e regional, reconhecida até por autoridades governamentais. (continua…)
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Pensador por opção. [email protected]