Recortes de jornais (19 de agosto/2012)

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Tenho hábito, não só, de recortar notícias de jornais, como guardá-las. Manuseando um livro de Mitologia grega, de autoria de Junito de Souza Brandão, encontrei um recorte de autoria de Millor Fernandes, de 20 fevereiro de 1991. Achei interessante o assunto ali abordado em virtude de um fato comum ocorrido com um dos filhos do Dr. Fortunato, o homem encarregado da nossa boa visão. Conta ele que seu filho, um garoto de 8 oito anos, foi censurado pela sua Professora por ter escrito a palavra C Á L C U L O, com acento agudo assinalado na letra A. Imediatamente, o Dr. Fortunato, por não concordar com o procedimento da professora, consultou o Mini Dicionário Houaiss, que eu ofertei ao seu filho e constatou que o garoto estava certo, mandando uma fotocópia para a Professora. CÁLCULO com acento agudo é substantivo, enquanto que sem ele é do verbo CALCULAR, 1ª. pessoa do presente indicativo. Tudo isso em virtude dos diversos Acordos Ortográficos entre os paises de língua portuguesa, a última vigorando a partir de 1º. de janeiro de 2009. Millor Fernandes escreveu seu artigo alicerçado no penúltimo Acordo. Disse ele: “Ziraldo gravado na secretária eletrônica, preocupado com o destino da língua, talvez apenas com antifeminismo na língua: estão masculinizando a cólera em todos os jornais! Virou o cólera. Em todos os dicionários do Ziraldo, diz ele, cólera é feminino. Os meus divergem, hesitam; em latim, em grego, em italiano, em alemão, em iidich, em turco (hoje é prudente ter nas mãos um dicionário de turco, já já seremos obrigados a depositar nossas poupanças em Ancara), cólera, doença, é feminino. Em sueco e inglês é neutro. Mas é masculino em francês e espanhol. O nosso machismo colérico veio do espanhol, há já  algum tempo, e não através do Peru, agora, Ziraldo.Veio da Colômbia. O responsável por essa masculinizão da nossa cólera é o Antônio Calado (sir Anthony). Ao fazer sua excelente tradução do último romance do Garcia Marques (colombiano), Anthony achou (presumo, não falei com ele) que chamá-lo de Amor nos tempos da cólera  criaria dubiedade. E preferiu chamar o livro de Amor nos tempos do cólera, menos dúbio, mais estranho e mais bonito. Fez muito bem. É nessas horas, Ziraldo, que devemos mandar as exatidões semânicas pro diabo e “darmos partida nova a palavras e expressôes”, termos a coragem de inventar ou transformar. Claro, não devemos apoiar a iguinarância pura e simples, que transforma em independente o advérbio independentemente, que muda o verbo  pôr em colocar, fazendo com que as galinhas coloquem ovos e, no fim do dia, você assista a um colocar-do-sol, naturalmente a nível de montanha. Mas mesmo isso, que é errado hoje, e deve ser ridicularizado, tem que ser aceito se durar no tempo, pois língua é resultado de uso, feita de fontes autênticas e espúrias, de origem visíveis ou desconhecidas e, muito! de maravilhoso bestialógico. Língua é consenso. E, como mulher, não é para permanecer virgem. Como esta, quanto mais bonita, mais “digna” – mais cobiçada. Mais cortejadores, mais sedutores e até mais estupradores querem, e conseguem, graças a Deus, “conspurcá-la”. Mas, claro, Ziraldo – até que outro consenso se estabeleça, cólera, em português, é palavra feminina. Eu porém, te confesso, nem cheguei a me preocupar com isso, o tanto que me assusta o mal muito mais terrível que nos atacou no dia 15 de março de 1990. E logo se transformou numa endemia, reubando velhinhos, assaltando a classe média, matando e esfolando trabalhadores sem dó nem perdão – o Cólera”. Este dia 15, por ele mancionado, creio, é um agradecimento ao Plano Collor que prendeu todo o dinheiro do povo naquele fatídico dia. Apenas para gáudio de todos, o livro de Gabriel Garcia Maques que Millor falou, tenho dois exemplares, um em português com a tradução de Antonio Calado e outro no original em espanhol. Portanto se verifica as dificuldades semânticas da nossa lingua, onde as pessoas seguem as regras ao pé da letra. O texto do velho e bom Millor, falando tantas línguas como acima indicado, é esclarecedor. O filho do Dr. vai longe, pois teve a coragem que Millor lembrou, de não só, enfrentar a profesora, como a de corrigí-la, sem polemizar. Espero que ele continue destemido e observador. Teixeira de Freitas, 10 de agosto de 2012. *Ary Moreira Lisboa é advogado e escritor.