Qualidade, excelência e santidade

345

A pergunta que me ocorre, nesse cenário em que uma luzidia presunção coletiva projeta as sombras de profundas insatisfações pessoais, é a seguinte: por que tantos e tantos renunciam à santidade, relegando-a ao patamar das coisas inatingíveis? Se somos tão aperfeiçoáveis em tudo, por que abdicamos à busca do Bem e da perfeição moral e espiritual? Quando se trata dessas dimensões do ser, apesar de sermos cobradores permanentes da perfeição alheia, costumamos afirmar que “somos como somos” e que “devemos aceitar nossa imperfeição”.
Vivemos num cenário de generalizada presunção. Ordenam-se, para o compor, vários fatores: as eficientes técnicas de marketing – demonstrando que a exaltação da qualidade de produtos e serviços gera dividendos empresariais – acabam induzindo todo mundo a fazer a mesma coisa; a velocíssima multiplicação das informações e do conhecimento que, saindo da escala humana e entregue ao ritmo de máquinas sofisticadas, nos acena com a possibilidade de sermos usufrutuários de todo esse manancial de dados; os métodos de autoajuda, que convertem em sucesso editorial qualquer livro cujo título proponha transformar em sofisticada porcelana a argila vulgar de que fomos feitos; a evidente qualificação dos instrumentos e da possibilidade de formação necessários para que se possa fazer de modo certo o que se tenha para fazer; a vertiginosa evolução da tecnologia de ponta e da quantidade de pontas da tecnologia, produzindo um crescente otimismo quanto à excelência das futuras condições da vida humana.
Em outras palavras, a humanidade se considera, como mínimo, o máximo. E não são poucos aqueles que, comparando o que o homem tem conseguido fazer com aquilo que Deus deixou feito, chegam à conclusão de que caminhamos para o empate técnico e já confundem o homem com o próprio Deus. É verdade que resta sempre um resíduo de limite, pois cada conhecimento adquirido descortina vários mistérios novos, de modo que cada explicação propõe uma série de perguntas adicionais; e é verdade, ainda mais amarga, que o homem não conseguiu se desvencilhar da fatalidade da morte (embora, ainda neste caso, muitos creiam, como diagnosticou alguém, que nosso contemporâneo se vê como imortal, considerando apenas uma questão de tempo dar-se solução aos injustificáveis embaraços dos velórios).
Mas, entre o orgulhoso devaneio de alguns, o pessimismo de outros para os quais tudo é ilusão (sendo o homem uma toupeira incapaz de reconhecer qualquer verdade) e a objetiva percepção da realidade, resta uma sólida evidência: é quase inesgotável nossa capacidade de aprimorar aquilo que fazemos. Tal observação se relaciona, numa perspectiva cristã, com a própria natureza humana – imperfeita, mas, aperfeiçoável.
Nascemos com o pecado original, desdentados e com um sorriso de insuperável inocência, usamos fraldas e engatinhamos lenta e desajeitadamente para superar as pequenas distâncias que nos separam de nossos objetivos. Em pouco tempo estamos correndo, nosso sorriso exibe dentes, vamos dominando os esfíncteres e perdendo a ingenuidade. Um pouco mais e nos tornamos homens do mundo, frequentamos o dentista, nossos objetivos se afastam de nós, andamos de avião e sorrimos por conveniência sensual, social ou comercial.
Somos imperfeitos, sim, mas somos aperfeiçoáveis. Toda nossa “evolução” se faz perseguindo um nível de perfeição no qual se contêm eficiência, eficácia, qualidade do que produzimos, elevado grau de formação e informação e, em muitos casos, uma busca por beleza plástica que passa pelo espelho e se estende nas circunstâncias materiais de que nos rodeamos. Continua.
*Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil, integrante do grupo Pensar+.