Poucos registros, processos em papel e silêncio da família: as peculiaridades de um serial killer descoberto 20 anos depois

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Apesar de polícia americana reforçar a importância da exposição de Roberto Wagner Fernandes, para que mais vítimas possam reconhecê-lo, assassino morreu antes do início da ‘era digital’

. Foto: Divulgação / Broward County Sheriff's Office
Foto: Divulgação / Broward County Sheriff’s Office
Rio — Entre as muitas singularidades que cercam o caso de Roberto Wagner Fernandes, paranaense acusado pelo assassinato de três mulheres na Flórida (EUA), tendo sido publicamente ligado ao crime 16 anos após sua morte esta semana, está a escassez de informações que podem ser encontradas sobre o comissário de bordo brasileiro. Quando chocou o avião que pilotava contra um mangue entre a fronteira do Paraguai com a Argentina, em 2005, Fernandes já tinha 40 anos e um rastro de crimes cometidos — a maioria, ainda não revelados. Naquela época, poucos processos, cadastros e informações eram digitalizadas e a internet ainda era um terreno praticamente novo. A empresa de aviação onde trabalhava no Brasil faliu também no início dos anos 2000. Além da ação que autorizou a exumação do corpo de Roberto no Cemitério São Pedro, em Londrina — o que possibilitou a coleta de DNA e confirmação de seu envolvimento nos crimes em solo americano — ainda existem três processos na Justiça paranaense em seu nome, que por enquanto são mantidos em sigilo.
Desde quarta-feira, a reportagem de O GLOBO não só realizou pesquisas, como também solicitou dados a órgãos do Paraná, como o Tribunal de Justiça (TJ-PR), o Ministério Público do Paraná (MP-PR) e a Polícia Civil local. Todos alegaram dificuldades para obter ofícios e históricos acerca de Fernandes por serem antigos e ainda em papel, não digitalizados.

Há complicação em obter dados, inclusive, do processo daquele que pode ter sido o primeiro dos crimes do potencial serial killer: o assassinato da esposa, Danyelle Amaral Bouças Fernandes, em novembro de 1996 – o qual, segundo investigadores da Flórida, o piloto foi absolvido ao alegar “legítima defesa”. Num raro documento, como já antecipado pelo GLOBO, é possível ter acesso às alegações do advogado em uma das apelações. Mesmo Roberto tendo admitido ter dado os dois tiros fatais na mulher, ele alega que ela estava agressiva, embriagada, sob efeito de remédios e que não havia testemunhas no quarto no momento do crime que colocassem em xeque a versão apresentada pelo piloto – princípio de in dubio pro reo.

Além disso, a polícia do condado de Broward afirma que, em 2003, pouco depois de voltar ao Brasil, o paranaense ainda passou a responder por “várias” acusações de agressões a mulheres, sendo uma por estupro, mas o documento ou detalhes dele também não foram fornecidos. Num único registro encontrado sobre ele bases de dados públicas dos EUA, seu endereço aparece registrado como sendo no Southeast Financial Center, um centro comercial no coração de Miami, onde há apenas escritórios.

Além de tudo ter acontecido num momento em que a informatização e digitalização de dados ainda estavam prestes a explodir, Roberto, por ser piloto, também tinha facilidade – e a intenção – de esconder seus rastos. Na segunda-feira (30), quando a confirmação do envolvimento do brasileiro foi confirmada pela polícia do condado de Broward, na Flórida, os investigadores destacaram que, nos registros de entrada e saída de Fernandes dos EUA, há diversas lacunas. Isso porque ele tinha liberdade e autorização para voar para qualquer lugar do mundo em sua própria aeronave. Tamanha autonomia, inclusive, é o que chama a atenção dos policiais para a possibilidade de que o serial killer brasileiro não tenha parado em Danyelle (1996), Kimberly Dietz-Livesey (2000), Sia Demas (2000), e Jessica Good (2001). Eles alimentam a expectativa de que, com a divulgação, outras vítimas possam começar a surgir.
Brasileiro Roberto Fernandes foi identificado como o responsável pela morte de três mulheres na Flórida, nos EUA Foto: Broward Sheriff's Office / City of Miami Police Department / News4jax
Brasileiro Roberto Fernandes foi identificado como o responsável pela morte de três mulheres na Flórida, nos EUA Foto: Broward Sheriff’s Office / City of Miami Police Department / News4jax

Filha prefere não comentar

Sobre Danyelle, morta há mais de 25 anos, os registros são ainda mais raros. Um deles é sobre sua exoneração em Diário Oficial do cargo de professora de educação básica do município de Londrina, um mês após ter sido assassinada. Numa pesquisa mais aprofundada, é possível encontrar uma foto de sua lápide, no Cemitério São Pedro – o mesmo onde seu algoz foi enterrado. A inscrição leva o sobrenome Fernandes.

Passado tanto tempo, a falta de rastros do que já aconteceu também se soma ao silêncio dos parentes, que depois de tantos anos, parecem preferir deixar o passado em seu devido lugar. Nesta quinta, a reportagem também entrou em contato com a filha de Danyelle e Roberto – que tinha cinco anos e estava no apartamento quando o próprio pai matou sua mãe. Ela disse que, neste momento, prefere não se manifestar sobre o assunto. Outras pessoas da família não foram localizadas ou não retornaram às ligações.
Lápide de Danyelle Bouças, em cemitério de Londrina Foto: Reprodução
Lápide de Danyelle Bouças, em cemitério de Londrina Foto: Reprodução

Cronologia de um assassino

18 de novembro de 1996

Roberto Wagner Fernandes mata a mulher, a professora Danyelle Bouças Fernandes, de 27 anos, com dois tiros, no apartamento de ambos em Londrina (PR). É absolvido por legítima defesa.

28 de novembro de 1996

A prostituta que foi o pivô da discussão do casal conta à polícia que telefonou para a casa de Fernandes e Danyelle. Ela conta que em um encontro, Fernandes a espancou e tentou afogá-la.

1996 a  1999

Fernandes realiza viagens para os EUA e em seguida começa a trabalhar em Miami como motorista de turismo e comissário de bordo.

Junho de 2000

Kimberly Dietz-Livesey, de 35 anos, é encontrada  em uma mala em Cooper City, na Flórida. Ela foi espancada até a morte.

Agosto de 2000

Sia Demas, de 21 anos, é encontrada morta em uma mochila em Dania Beach. Demas também foi espancada.

30 de agosto de 2001

Jessica Good, de 24 anos, é achada na Baía de Biscayne, morta a facadas.

1º de setembro de 2001

Roberto foge para o Brasil. Na noite em que foi morta, Jessica Good contou a um companheiro que iria se encontrar com um “homem branco hispânico”.

2003

Fernandes passa a responder por estupro e outros casos de agressão contra mulheres no Brasil.

13 de dezembro de 2005

Fernandes morre na queda de um avião que pilotava no Paraguai, perto da fronteira com a Argentina.

2011

Após consulta ao banco de dados brasileiro, os investigadores americanos encontram uma combinação entre o DNA colhido de Roberto Wagner no assassinato da esposa, e a amostra colhida nas vítimas de Miami.

2020 e início de 2021

O corpo de Fernandes é exumado e o DNA combina com o de  amostras colhidas com as três mulheres mortas na Flórida.

30 de agosto de 2021

Policiais de Broward, na Flórida, anunciam o fim das investigações das mortes de três jovens mas alertam que  Roberto pode ter assassinado outras pessoas. Fonte: Arthur Leal / O Globo