Na feira-livre, alguém pode perguntar ao dono do açougue, o marchante, – magarefe é o matador do boi – , se ele tem ‘fuçura’. O que é? O nome está correto ou é uma corruptela? Se o fulano não tiver bom ouvido, pode até não entender o termo nem escutá-lo a ponto de questionar a sua existência pela pronúncia diferente. Como a maioria já acha que o pessoal que frequenta feira-livre já fala ‘errado’, nem liga quando se ouve tão ‘sonora’ palavra.
Muitas palavras de cunho popular em nosso idioma existem por motivo de assimilação – pela semelhança, sonora ou gráfica, de uma vai surgindo outra. Até nome próprio se encaixa nesse aspecto – Vânderson pode-se tornar Linânderson; Linaédson pode ser corruptela de Linéderson. Vale a sonoridade – a que ficar mais bonita, lá está o nome ideal para constar na certidão de nascimento do rebento. Os nomes citados aqui são fictícios, embora possa existir algum com a grafia muito próxima.
O porco, como outro animal de sua família, ‘fuça’, isto é, revira a terra em busca de alimento – raízes, minhocas, tubérculos, e próximo a mananciais até peixes. Se o porco fuça, ou fossa, ele teria fuçura? Deduz o colunista que sim, já que o nome certo no dicionário, vindo do latim, partícipe da linguagem culta, não é de tão fácil uso. Como pouco se lê, e o dicionário não está à disposição em casa para consulta, repete-se o termo aprendido nos primórdios, a tradição oral – de boca em boca, o termo vai à Roma conhecer a sua história, que chegou até Portugal e veio residir entre nós brasileiros. Fuçar, além de revirar a terra, pode ser bisbilhotar a vida alheia. Duvida do comentário? Procure na feira ‘úbere’, falado ou escrito, que você vai encontrar apenas e sempre: “ubre” de vaca. Isso é uma corruptela.
Fuçura é fressura. Não defina o nome agora, nem vá ao dicionário consultá-lo. Vá à feira e procure um vendedor ‘de fato de boi ou porco’ e lhe pergunte – “O senhor tem fressura?” Certamente, não vai responder, ou vai ficar de cara feia achando que lhe foi questionado se ele tinha ‘frescura, fissura’, ou algo similar.
Nem todo mundo vai concordar com esta opinião; mas é certo que, quando o termo não é conhecido (falado ou escrito), o outro duvida que ele exista. Em certa época, num trabalho em Nanuque, escrevi um texto, e para simbolizar o final de tarde, com aquela faixa vermelha (o arrebol), usei o vocábulo ‘ocaso’, que tem o significado de ‘por do Sol’. Tiraram ‘meu palavrão’ e colocaram no lugar ‘acaso’, que nada tem a ver semanticamente com seu similar. Acaso, você vai acreditar? A propósito, ‘acaso’ tem valor de ‘caso’ – Caso você vá, avise-me. E não diga “Se caso você for…” nem “Se acaso você for…” Pense um pouco e use apenas um de cada vez – caso você vá, se você for, acaso você vá. Denota o comentário que nem só substantivos, adjetivos e verbos têm sinônimos, como muito estudante pensa. Pedi a um aluno que desse um sinônimo para a conjunção coordenativa adversativa ‘mas’; quase se chocou com o mundo em virtude da pergunta, olhou para os lados, e questionou – “E existe?” O senhor está certo disso?, quis demonstrar.
Vamos ao caso: ‘mas’ pode ser todavia, contudo, porém, no entanto, entretanto. Isso é bom demais para quem quer falar melhor, pois muita gente ainda usa em um só momento “mas porém” – Você pediu um valor muito alto pelo seu carro, mas porém não vale”. Viu a redundância? Diga: … mas, não vale. Porém, não vale. Todavia, não vale, No entanto, não vale. Entretanto, não vale. Note que a frase está repetida, mas só assim se percebe o uso correto dessa conjunção. Reescreva a frase ‘Fui à sua casa, mas você não estava lá.’ Repita-a e substitua ‘mas’ pelos seus sinônimos, um de cada vez, até cinco vezes. Ou até use locução conjuntiva equivalente.
E a fressura? – pois é, meu caro! – este o vocábulo certo para o conjunto de vísceras mais grossas dos grandes animais (as que são vendidas em feira). No sertão baiano, pedaços dessas vísceras são chamados ‘chedite’, vendidos no momento da xepa. Não confunda fressura com fissura, fenda, pequeno buraco em parede, rocha, madeira, que serve de moradia para animal que ali caiba. Ou simples ocorrência da Natureza – surgiu ali uma fissura. Sob a luz da Historiografia, em Roma, época de seus imperadores, havia o arúspice – que palavrão! – sacerdote que fazia presságio consultando as entranhas da vítima (as vísceras do sujeito). Seu ato foi chamado de aruspicação, ou aruspicina. Pesquise isso.
O advérbio ‘aí’ tem largo uso cotidiano – na residência, no trabalho, na rua. A todo instante, é usado por pessoas de todos os níveis culturais, tanto em textos escritos como na fala coloquial. Aí, do latim ‘ad hic’, nesse lugar – Deixe a chave aí onde você está. Expliquemos melhor, como diz o dicionário: no lugar em que está a pessoa a quem se fala. Sinônimo, nesse lugar, lá, onde você está. Variando o uso, vêm frases assim – Aí, o que aconteceu? (Nesse momento…) Aí, você pode se dar mal – nesse caso. Por aí – pelo mundo afora. Aí é que você se engana! – Nisso, você se engana. “Aí” é, por isso, um termo rico, cuja polissemia nos chama a atenção, tanto que alguns locutores, apresentadores, âncoras, durante o seu programa, chegam a usar esse advérbio vinte vezes – trata-se agora de um vício de linguagem. “Os fatos aí… Fale aí sobre o que sabe…” Perceba essa repetição com bastante cuidado. Das dez vezes, para ser mais brando, só caberiam duas ou três, se houve um intervalo entre uma frase e outra, e com conteúdo diferente.
Faça um teste e peça a um jovem que trabalha no comércio para escrever um termo que tenha o prefixo ‘super’ (superpromoção, superdesconto, superlegal, superprêmio). Observe bem: apenas, pronuncie-o, e ele vai escrevê-lo.
Pegue a resposta escrita – não vale soletrar (os fonemas) ou dizer que tais são as letras que compõem a palavra questionada. Todos vão escrever: super desconto, hiper carro, super amigo, super criativo, hiper bacana. Hiper serve como sinônimo de super, embora aquele tenha sentido mais expressivo (elevado) que este. A escrita separada está correta? Não.
E por que a escrevem? Pela influência do próprio comércio – um local a usa, e num efeito-dominó, todos usam a mesma grafia. Peça agora para escrever ‘supermercado’ – ninguém escreve ‘super mercado’. Se esta palavra não pode ser escrita com termos separados, as outras também não: segue-se um modelo. Concluiu? O comércio, com todo respeito, não usa ‘superoferta, superreta, supercheque’. Concorda? Super e hiper ficam justapostos, sem hífen, ao vocábulo principal. Qualquer termo encontrado no dicionário (com a grafia correta) serve de modelo para mil palavras desse tipo que o comércio criar. Supercorreto, superinteressante, meu superchegado!
Um abraço.
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