Pesquisa do PPGES/UFSB mostra como o protagonismo indígena fortalece a governança da água em Porto Seguro

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A pesquisa de doutorado de Ricardo Almeida Cunha, defendida no Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), destaca o papel do povo Pataxó na preservação dos recursos hídricos e na construção de políticas públicas participativas voltadas à governança da água. A tese foi orientada pelo professor Roberto Muhajir Rahnemay Rabbani e coorientada pelas professoras Allívia Rouse Carregosa Rabbani e Rahma Bentirou Mathlouthi. A defesa ocorreu no dia 20 de outubro de 2025. 

Conforme Ricardo Cunha, a pesquisa abordou o protagonismo indígena na governança da água no município de Porto Seguro (BA), com foco na Aldeia da Jaqueira, território do povo Pataxó. O estudo analisou como a integração entre saberes tradicionais e ciência cidadã pode contribuir para a conservação dos recursos hídricos e o fortalecimento da gestão participativa da água, considerando a água como bem social, cultural e espiritual.
O contato com a comunidade Pataxó da Aldeia da Jaqueira veio há muito tempo, quando Ricardo Cunha iniciou sua atividade profissional como professor do Instituto Federal da Bahia, em Porto Seguro, há mais de 20 anos. A atuação acadêmica, em projetos de pesquisa e extensão, e a convivência pessoal se intensificaram na implantação do Curso de Licenciatura Intercultural (LINTER), voltado à formação de professores indígenas. Isso aproximou Ricardo ainda mais das aldeias da região e despertou a vontade de retribuir o aprendizado com a comunidade, com uma contribuição acadêmica que une o olhar científico e o saber ancestral.
“Essa convivência transformou meu olhar sobre o território, o meio ambiente e o sentido da palavra ‘comunidade’. Aprendi que o tempo da natureza é o tempo da sabedoria, e que pesquisar com os Pataxó é aprender a escutar o rio antes de medir seu pH. A tese, portanto, é também uma retribuição: um gesto de reconhecimento e gratidão à confiança e à partilha de saberes que essa convivência me proporcionou”. 
O problema motivador do estudo partiu da constatação de que o Rio Itinga, que corta o território da Aldeia da Jaqueira, vinha sofrendo com alterações na qualidade da água, provocadas pela expansão urbana desordenada, pelo turismo de massa e pelo lançamento inadequado de efluentes domésticos. Esses impactos ameaçavam não apenas o equilíbrio ambiental, mas também o modo de vida do povo Pataxó, que tem na água um elemento sagrado, central em sua cosmologia e nas suas práticas cotidianas.
“A ausência de políticas públicas específicas para o saneamento e gestão ambiental em terras indígenas de Porto Seguro foi outro fator determinante. A percepção de que os próprios Pataxó poderiam ser protagonistas no monitoramento da água e na construção de soluções motivou a elaboração de uma proposta que unisse ciência, legislação e saber tradicional”, pontua Ricardo.

Articulação de conhecimentos em prol da comunidade 

Na sua investigação, Ricardo combinou conhecimentos das Ciências Ambientais, do Direito e da Geografia, em uma abordagem qualitativa e interdisciplinar. O trabalho foi estruturado no formato multipaper, integrando artigos científicos produzidos ao longo do doutorado. As principais etapas dessa pesquisa foram o levantamento bibliográfico e revisão sistemática da literatura (2014–2024) sobre protagonismo indígena na governança hídrica; visitas de campo e imersões na Aldeia da Jaqueira, com observação direta das práticas cotidianas e entrevistas com lideranças locais; coleta e análise de amostras de água do Rio Itinga com participação ativa dos indígenas, utilizando sensores digitais e kits portáteis; oficinas de capacitação técnica com jovens e lideranças Pataxó, aplicando o conceito de ciência cidadã. 
Um dos resultados do trabalho é o modelo de monitoramento colaborativo da qualidade da água, empregado na avaliação do rio Itinga, principal curso hídrico que atravessa a Aldeia da Jaqueira. A metodologia aliou o uso de tecnologia ambiental e capacitação técnica dos indígenas à sabedoria ancestral do povo Pataxó.
Ricardo explica que o modelo de monitoramento colaborativo desenvolvido na pesquisa é um sistema comunitário de acompanhamento da qualidade da água que une ferramentas tecnológicas com os saberes tradicionais Pataxó. “De um lado, foram utilizados equipamentos simples e acessíveis, como sensores de pH, condutividade e outros, associados a uma plataforma digital participativa, que permite registrar e divulgar os resultados de forma transparente. De outro, os saberes ancestrais — a observação das mudanças nas cores, nos cheiros, no comportamento dos peixes e no som do rio — foram reconhecidos como indicadores ambientais legítimos e incorporados ao protocolo de monitoramento.” O pesquisador destaca que essa integração permitiu a criação de um modelo híbrido, com a tecnologia se aliando ao conhecimento tradicional para validar percepções e fortalecer a autonomia dos indígenas: “O resultado é um método replicável, capaz de gerar dados técnicos e culturais que subsidiam tanto ações comunitárias quanto políticas públicas”, afirma.

Contribuição em método e proposta de leis

Por fim, Ricardo e a comunidade da aldeia trabalharam na elaboração de propostas legislativas e parecer jurídico sobre proteção de corpos hídricos em terras indígenas. “Essa metodologia colaborativa buscou garantir que o processo de pesquisa fosse também um processo de aprendizado coletivo, com respeito às epistemologias indígenas e à ética intercultural”, destaca o pesquisador. 
A pesquisa também resultou em duas minutas de projetos de lei que propõem diretrizes para a proteção e o monitoramento de corpos hídricos em terras indígenas, ampliando o alcance da governança participativa no município de Porto Seguro. O primeiro texto (PL nº1/2024) propõe a criação do Programa Municipal de Proteção e Monitoramento de Corpos Hídricos em Terras Indígenas, com participação direta das comunidades na coleta de dados e na formulação de diagnósticos ambientais. Já a minuta do PL nº 2/2024 estabelece a Política Municipal de Governança Hídrica Participativa, reconhecendo os povos originários como co-gestores dos recursos naturais e assegurando espaço em conselhos e audiências públicas.
O pesquisador conta que ambas as propostas foram encaminhadas à Câmara Municipal de Porto Seguro, com apoio técnico e jurídico do gabinete do vereador Lucas Barreto, parceiro institucional da pesquisa: “O objetivo é que os textos sejam debatidos futuramente com a sociedade e transformados em instrumentos legais de justiça hídrica e inclusão sociocultural”.
Para Ricardo, a tese aprovada reforça a importância da participação efetiva dos povos indígenas nas decisões sobre o uso e a gestão da água, reconhecendo que a sustentabilidade depende da justiça socioambiental e da valorização da diversidade cultural. O estudo mostra que o conhecimento tradicional indígena é um elemento estratégico para o planejamento territorial e para a formulação de políticas públicas mais inclusivas e sustentáveis: “Defender essa tese foi uma oportunidade de dar visibilidade ao protagonismo indígena e à riqueza cultural dos povos originários da Terra Mãe do Brasil. A UFSB se mostrou um espaço fértil para essa construção coletiva, onde ciência e tradição puderam caminhar juntas em prol da preservação da água e da vida.” Fotos: Ricardo Almeida Cunha. Heleno Rocha Nazário / Jornalista – Mestre em Comunicação Social (PPGCOM/PUCRS) e Coordenador do Setor de Jornalismo – ACS

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