Com isso, essa espécie endêmica do Brasil já é considerada funcionalmente extinta em alguns pontos da costa. Uma pesquisa desenvolvida no curso de Ciências Biológicas, do Centro de Formação em Ciências Ambientais da Universidade Federal do Sul da Bahia (CFCAM/UFSB) confirma que o budião-azul é essencial para os recifes de coral no Arquipélago de Abrolhos, em uma expansão do que a ciência sabe sobre o papel ecológico desse peixe. O artigo Dynamics of grazing scars of Scarus trispinosus, the largest and most endangered parrotfish of the southwestern Atlantic (Dinâmicas de cicatrizes do Scarus trispinosus, o maior e mais ameaçado peixe-papagaio do Sudoeste do Atlântico) foi publicado na revista científica Marine Biology e é assinado por Arilda S. Rossi, Natália C. Roos, João L.L. Feitosa, Fabiana C. Félix-Hackradt e Carlos Werner Hackradt.
A pesquisa realizada mostrou que há uma relação entre o tamanho do peixe, sua mordida e a abertura de áreas livres no substrato dos recifes. Isso porque há uma disputa por recursos e pontos de fixação naquela área, entre espécies de algas e os pólipos de coral. O papel do budião-azul, a depender do seu tamanho e idade, que determinam o tamanho da mordida no substrato, varia de raspador a escavador. “Os budiões (não só essa espécie, mas em geral) são animais considerados ‘jardineiros do recife'”, explica o professor Carlos Werner Hackradt, atuante no Centro de Formação em Ciências Ambientais da Universidade Federal do Sul da Bahia (CFCAM/UFSB) e no Laboratório de Ecologia e Conservação Marinha (LECOMar). Ao raspar ou escavar o fundo e remover a cobertura, o budião-azul abre espaço no recife para novos recrutas, sejam as algas ou os cnidários que formam os corais: “Corais são organismos de crescimento muito lento, milímetros ao ano. Algas, por outro lado, podem crescer centímetros ao dia. Sendo assim, as algas são organismos com alto valor competitivo e normalmente levam a melhor. Por exemplo: um propágulo de uma alga tem uma probabilidade muito maior de se fixar e crescer no substrato que a larva de um coral. Assim, como os budiões estão ali diariamente abrindo espaço no recife, eles aumentam consideravelmente as chances das larvas de corais em acharem um local adequado no substrato, se fixarem e se desenvolverem”.
O ponto é que o budião-azul é bastante visado pela pesca artesanal e esportiva, e apesar de ser endêmico do litoral brasileiro, sua população foi reduzida em 50% e sua pesca hoje é proibida. “Hoje a pesca do budião-azul está proibida em todo território nacional, com exceção das RESEX [reservas extrativistas] do Corumbau e do Cassuruba. Nestas duas unidades de conservação federais, a espécie conta com um plano de gestão local da pesca e podem ser capturados em certa medida. Entretanto, sabe-se que a espécie ainda é amplamente pescada em diversos locais e nos extremos de sua área de distribuição a espécie está funcionalmente extinta – isso quer dizer que se vêm estes animais, porém eles não desempenham mais seu papel ecológico poque estão em números muito baixos. Os dados gerais da espécie indicam que o PARNA Abrolhos é o último reduto da espécie, e que, fora do Parque, as populações estão presentes em pequenas quantidades quando comparadas com a situação de apenas 30 anos atrás”, conta o professor Carlos. O problema aumenta quando se sabe que não há outra espécie de peixe que cumpra essa função de abrir espaço para expansão e renovação dos corais.
Mesmo assim, o budião-azul segue visado, e o Parque Nacional Marinho de Abrolhos, onde a pesquisa foi realizada, é um dos poucos espaços seguros para essa espécie. O professor Carlos pontua que, quanto maior o peixe e quanto mais mordidas ele dá, maior é a marca deixada e portanto e mais “duradoura” ela também é, favorecendo a sucessão ecológia e a renovação dos recifes de coral. “Se os grandes budiões, que são os que desempenham mais e melhor essa função são removidos pela pesca, essa função pode ser perdida ou reduzida drasticamente, isso limita a capacidade dos corais em se fixarem e as algas vão lentamente tomando conta do recife. Essa alteração promove o que chamamos de mudança de fase (ou regime) do recife que passa de um regime coralíneo (com alta cobertura coralínea) para um regime menos produtivo e mais degradado de cobertura algal.”
Medição por cor
Para investigar essa ação do budião-azul em águas da costa brasileira, a equipe de cientistas se baseou em estudos realizados em recifes da região indo-pacífica. Estudos similares na região sudoeste do oceano Atlântico ainda são escassos, o que motivou a busca de dados. O trabalho realizado se baseou no monitoramento diário de cicatrizes de pastejo, termo técnico para as marcas de mordidas do peixe nos recifes. Assim, 21 cicatrizes de pastejo em matrizes de algas epilíticas (EAM) foram fotografadas diariamente por oito dias. As fotos serviram para quantificar as mudanças na recolonização da área das mordidas por algas ou por propágulos de coral, usando parâmetros de cor (espaço L*a*b) para diferenciar esses processos. As imagens das áreas das cicatrizes foram processadas e analisadas via aplicativos ImageJ, com análise de cor via Photopea. Os dados tiveram tratamento estatístico, com as áreas das cicatrizes comparadas em termos de diferença de cor com áreas-controle (sem cicatrizes) via Permanova, e uso de Modelos Lineares Generalizados Mistos (GLMMs) para tratar os efeitos de tamanho corporal dos peixes e número de mordidas. Com isso, a equipe analisou as relações entre as variáveis tamanho corporal dos peixes, que variaram entre 15 e 60 cm; o número de mordidas consecutivas no mesmo local (o “foray”, que varia de 1 a 4 mordidas); e a área das cicatrizes e a trajetória de recolonização.
Conforme o professor Carlos Hackradt, o tempo de avaliação das cicatrizes foi definido tanto com base em um estudo prévio (de Bonaldo e Bellwood, 2009) quanto no tempo viável de permanência no arquipélado de Abrolhos. Isso porque a embarcação disponível precisa retornar ao porto para limpeza e reabastecimento. Ele avalia que esse aspecto logístico limitou a coleta de dados, dado que a observação indicou que no final dos oito dias a cor da mordida no substrato do recife ainda não havia estabilizado.
Já a análise de cor levou em consideração a comunidade bentônica estudada. “Os organismos estabelecidos no turf (matriz de algas epilíticas: algo semelhante a um tapete de algas minúsculas que recobre os recifes) variam de cor em função da composição de espécies. As marcas mais claras, com altos valores de branco, são as marcas deixadas pela mordida dos budiões, e representam basicamente um substrato sem cobertura. A medida que os dias passam e a mordida vai sendo colonizada por microrganismos marinhos ela vai mudando de cor e tende a ser cada dia mais semelhante do controle (pedaço do substrato no entorno). Assim o padrão de cores foi usado como um proxy da comunidade bentônica e do processo de sucessão que ocorre após a mordida causada pelo budião-azul, trazendo uma forma de entender a função ecológica que ele desempenha”.
Dentre os resultados, a equipe constatou que os peixes com mais de 40 cm de comprimento têm papel desproporcional na abertura de espaços nus, colaborando assim para a sucessão ecológica, além de serem os reprodutores da espécie. Justamente esses maiores peixes é que são visados para a pesca, conforme a regulamentação pesqueira brasileira estabelecida pela Portaria MMA 148/2022, que permite captura de budiões-azuis entre de 39–63 cm. Assim, uma das sugestões indicadas no artigo é reduzir o limite superior de captura para proteger a função ecológica dos maiores espécimes nos ambientes em que a pesca é permitida, como maneira de ajudar a reverter o quadro. O intuito é permitir que indivíduos maiores da espécie possam funcionar como reprodutores e escavadores, renovando os cardumes e os recifes de coral.
Outros projetos estão em andamento no Laboratório de Ecologia e Conservação Marinha (LECOMar/UFSB), que integra a rede de pesquisa do Projeto Budiões (www.budioes.org). “Arilda mesmo está desenvolvendo o mestrado dela sobre área de dormida dos budiões e outros peixes em Abrolhos. Além desse trabalho, acabamos de publicar um artigo sobre a conectividade populacional de outras duas espécies de budiões, estamos finalizando dois estudos do conteúdo estomacal dos budiões através de metabarcoding e estamos avaliando a capacidade do PARNAMAr de Abrolhos em fornecer ovos e larvas de budiões para as áreas de pesca adjacentes ao parque”, lista o professor Carlos Hackradt. Por Heleno Rocha Nazário