Pesquisa abordou a Lei do Superendividamento e a distância entre a realidade social e as medidas de proteção ao consumidor a partir do mínimo existencial

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A conta não fecha no final do mês, e os valores a pagar só aumentam, afetando a capacidade de consumo, de interação social e a paz de espírito da pessoa. Esse problema amplo e global que é o superendividamento, bem como o meio que a legislação brasileira propõe para enfrentar essa questão, são abordados no artigo assinado pela professora Cristina Grobério Pazó, que leciona e pesquisa no Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais (CFCHS/UFSB) e pelo egresso do curso de Direito da UFSB e mestrando em Direito pela UFMG, Diego Casimiro. O paper Superendividamento e mínimo existencial: uma avaliação diagnóstica sobre a inconstitucionalidade do Decreto 11.150/2022 e seus impactos na Lei 14.181/2021 foi publicado na revista científica Civilística.

O artigo aponta para um tema urgente: dados do Mapa da Inadimplência e Renegociação de Dívidas, do Serasa, de julho de 2024, apontam para aumento de 136 mil consumidores registrados no cadastro de negativação. Com isso, 72,66 milhões de brasileiros estão endividados, o que corresponde a 36% da população brasileira, conforme o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, como os autores indicam no artigo, aumentou o número de pessoas que compram comida parcelada: entre agosto de 2023 e agosto de 2024, esse quantitativo subiu de 6,2% para 7,4% das transações parceladas no setor alimentar. Ou seja, o consumo básico para a sobrevivência vem ficando cada vez mais comprometido.

Os autores ressaltam que inadimplência e consumo são categorias com indicadores atualizados constantemente. Já o superendividamento preocupa por não ter esse monitoramento por órgãos oficiais e também por ser uma temática de discussão recente no país. Por superendividamento se entende “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas (que vão chegar à data de vencimento), sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”, como informa capítulo VI-A da Lei do Superendividamento (lei federal nº Lei 14.181/2021), que atualizou o artigo 54-A do Código de Defesa do Consumidor.

A Lei do Superendividamento incluiu e atualizou as leis que instituem o Código de Defesa do Consumidor (CDC, Lei 10.741/2003) e do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) justamente com o intuito de fornecer proteção às pessoas endividadas e de boa fé. No entanto, a definição do mínimo existencial, em termos de valor financeiro, foi deixada para o Decreto 11.150/2022, em uma escolha na qual os legisladores preferiram ter um mecanismo que previsse uma fórmula de atualização desse valor. E a definição do mínimo existencial naquele decreto, no seu artigo 3º, equivale a 25% do salário mínimo vigente na data da publicação do decreto – ou seja, o valor de R$ 303,00, sem previsão de atualização. Em 2023, o novo governo atualizou esse valor para R$ 600,00.

Esse ponto do decreto recebeu críticas na sua redação original e em sua atualização. O motivo é que a definição do mínimo existencial gera um valor que não basta para atender demandas de alimentação, educação, moradia, trabalho, lazer e outros direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal. É neste ponto que a pesquisa realizada por Diego e pela professora Cristina focaliza: qual o efeito do decreto na aplicação prática da lei do Superendividamento? Mais: o decreto 11.150 seria inconstitucional? Para abordar o tema, a escolha foi por uma pesquisa qualitativa e exploratória com análise de bibliografia, documentos e processos judiciais. O estudo realizado tem ligação com objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030: 1) Erradicação da Pobreza; 10) Redução das Desigualdades e 16) Paz, Justiça e Instituições Eficazes.

Dívidas e direitos 

Diego CasemiroA professora Cristina Pazó aponta que a Lei do Superendividamento, aprovada em 2021, é um marco legal importante para a proteção de consumidores em situação financeira delicada. São pessoas que estão sem condições de quitar suas dívidas sem sacrificar a própria subsistência. Por isso o mínimo existencial é um conceito tão decisivo. “Acontece que o conceito de “mínimo existencial” ficou em aberto na legislação, aguardando uma regulamentação posterior. Essa regulamentação veio em 2022, com o Decreto 11.150/2022. Em seu artigo 3º, o decreto fixou em R$ 600,00 o valor considerado legalmente “suficiente” para que uma pessoa física cubra seus gastos essenciais e sobreviva mensalmente”, detalha a pesquisadora.

Em termos práticos e técnico-jurídicos, esse artigo define que as propostas de renegociação e os planos de quitação de dívidas podem ser elaborados considerando o limite de R$ 600,00 da renda do superendividado. “Como professora e pesquisadora de Direito Civil, essa definição me gerou uma série de questionamentos. Com os altos custos de alimentação, moradia, vestuário e saúde no Brasil, será que R$ 600,00 são, de fato, suficientes para garantir uma vida digna? Essa inquietação me levou a submeter um plano de trabalho a um edital interno da UFSB com o objetivo de avaliar a constitucionalidade desse mínimo existencial fixado pelo Decreto 11.150/2022, sob uma perspectiva jurídico-sociológica. Minha intenção foi a de colaborar com a discussão técnico-jurídica sobre esse arcabouço normativo que, longe da justiça social, reforça e reproduz desigualdades”, pontua Cristina.


Ela e o pesquisador Diego propõem que o mínimo existencial seja estipulado de forma individualizada, socialmente comprometida e tendo em mente as especificidades do consumidor superendividado. Ou seja, deveria ser feito um cálculo específico para cada caso. “Em nosso estudo, constatamos que a ideia de mínimo existencial sofreu um esvaziamento significativo com o Decreto 11.150/2022. Propomos que o mínimo existencial seja estabelecido de forma individualizada, tanto nas negociações extrajudiciais quanto nas ações judiciais, analisando-se as particularidades de cada caso. Colocar esse conceito em prática, certamente, não é uma tarefa fácil. Contudo, acreditamos que esse é o “incômodo necessário” a ser enfrentado quando discutimos o mínimo existencial. Por se tratar de algo tão relevante na vida dos consumidores, ele requer uma análise acurada, técnica e minuciosa, visando conter injustiças e desigualdades”, defende Diego.

Para ele, essa medida demanda discussões ampliadas e, muitas vezes, demoradas nas negociações extrajudiciais ou ações judiciais. Essas discussões devem ser orientadas por um corpo técnico capaz de realizar cálculos específicos sobre a renda do superendividado. O ponto, para Diego, é que esse cálculo pode priorizar elementos diversos, como a composição familiar, a natureza da dívida, a assunção de outras dívidas, entre outros fatores, de modo a de fato preservar das cobranças o valor realmente necessário para a subsistência mensal: “É certo que, pela variedade de elementos possíveis, torna-se desafiador delimitar aqueles aplicáveis a todos os casos e, portanto, avançar numa proposta de cálculo previamente planejada. Mas o que não se pode concordar é que R$ 600,00 sejam considerados suficientes para a sobrevivência digna do brasileiro.”

Abordagem inovadora

Cristina PazóA pesquisa empregou a abordagem da Teoria Geral do Controle de Constitucionalidade, no esforço de aproximar o Direito Civil do Direito Constitucional, conta a professora Cristina. Trata-se de um dos mecanismos mais importantes do ordenamento juridico brasileiro, garantidor da conformidade de atos normativos, como leis e decretos, com a Constituição Federal de 1988. A TGCC é um instrumento relevante para fiscalizar legislações civis que, por vezes, podem extrapolar os limites constitucionais. Na grade curricular do curso de Direito, explica Cristina, o controle de constitucionalidade é amplamente discutido nas disciplinas de Direito Constitucional, abordando suas diferentes manifestações e aplicações.

“Em nosso estudo, utilizamos a Teoria Geral do Controle de Constitucionalidade (TGCC) para aproximar o Direito Civil do Direito Constitucional. Assim, estabelecemos premissas epistemológicas para analisar a compatibilidade de normas dicotômicas e hierarquizadas, com a Constituição no topo. Vemos um potencial inovador nesse tipo de abordagem: outros estudos podem submeter leis civis, de diversos assuntos, ao crivo da TGCC para avaliar sua constitucionalidade. Esse investimento pode não só colaborar com a garantia de direitos fundamentais nas relações privadas, mas também com o aprimoramento da teoria geral do direito privado”, afirma a professora Cristina, que aponta ainda que essa análise aprofundada pode revelar lacunas importantes em leis e políticas públicas, contribuindo para seu aperfeiçoamento.

Continuidade dos estudos

O artigo assinado por Diego e a professora Cristina, resultado de pesquisa de Iniciação Científica (IC) deu as bases para ele obter uma vaga no Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O tema de estudo mudou, com a solidez conferida pelo percurso na IC para a pesquisa em Direito. No mestrado, Diego está pesquisando a Lei 14.611/2023, a Lei de Igualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios, que se relaciona mais com o Direito do Trabalho do que com o Direito Civil.

O pesquisador egresso da UFSB conta que essa mudança, além de atender interesse intelectual antigo sobre estudos de gênero, trabalho e desigualdade, se liga à necessidade particular de mudar o foco de pesquisa com regularidade. Ele contou com a orientação da professora Cristina Pazó na realização do seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC): “Inicialmente, o tema era o superendividamento de mulheres, mas depois acabou se tornando a Lei de Igualdade Salarial. Costumávamos brincar bastante com minhas mudanças e constantes inquietações. Afora isso, sinto que é inegável que minha imersão na pesquisa científica na UFSB, sob a orientação da professora Cristina na IC e no TCC, foi essencial para meu amadurecimento e desenvolvimento intelectual. Aprimorei bastante o emprego de técnicas e métodos de pesquisa, coleta e análise de dados, além da seleção de bibliografias pertinentes para reflexões jurídicas tanto de forma técnica (dogmática) quanto crítica (zetética). Sem esse aprendizado, com o grande zelo da Cris, a aprovação no Mestrado de excelência da UFMG jamais teria sido possível”, conclui.

A professora Cristina Pazó têm se dedicado intensamente aos estudos críticos do direito civil e do consumidor. Nesse sentido, desenvolve três projetos de pesquisa com foco em dívidas e vulnerabilidades sociais:

1 – O superendividamento de mulheres no contexto da geração sanduíche
2 – A dívida de mulheres e os marcadores sociais da diferença
3 – A vulnerabilidade do consumidor idoso frente à oferta de crédito consignado no Brasil atual

Além desses, ela também está à frente de um projeto de pesquisa que contextualiza a responsabilidade civil e as mídias digitais, intitulado TikTok e o Discurso de Ódio: Desafios entre Liberdade de Expressão e a Proteção da Dignidade. Por Heleno Rocha Nazário / Jornalista – Mestre em Comunicação Social (PPGCOM/PUCRS) e Coordenador do Setor de Jornalismo – ACS

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