País se colocou em controvérsia com uma estratégia que consiste em manter o percentual de corte prometido das emissões de dióxido de carbono, mas alterando a base de cálculo da promessa
Em 2005, pelos cálculos do Segundo Inventário Nacional de Emissões de Gases do Efeito Estufa, o país produzia cerca de 2,1 bilhões de toneladas de CO2 por ano. Esse volume, porém, foi revisado para 2,8 bilhões. O governo argumenta que, mantendo sua promessa percentual, isso abre margem para que 400 milhões de toneladas a mais de gases estufa por ano sejam emitidas em 2030.
Na prática, esse cálculo cria uma brecha para o Brasil continuar com a taxa de desmatamento anual no patamar dos 10 mil km², considerada preocupante. O governo, porém, diz que sua nova NDC é mais ambiciosa, pois o objetivo de 2030 evoluiu de um status de “indicação” para “compromisso”.
Marcha a ré
O GLOBO conversou com três analistas de política do clima que acompanham os bastidores das negociações na COP-26, e todas veem diplomatas brasileiros em posição desconfortável agora para conseguir algum avanço na conferência.
— Com essa NDC, o país está violando o Acordo de Paris, segundo o qual só se pode submeter compromissos mais ambiciosos que os anteriores, não menos. A ideia é impedir os governos de andar para trás — explica Stela Herschmann, especialista em políticas climáticas do Observatório do Clima, coletivo que reúne as maiores ONGs ambientais do país. — O Brasil chega à COP-26 como o país que mais recuou na sua NDC. O México fez uma coisa parecida, mas a revisão dos números não impactou tanto — diz ela.
O governo do Brasil, em tese, tem ainda alguns dias para mudar de ideia, pois a Convenção do Clima da ONU estendeu o prazo para que países submetam novas NDCs. A organização adiou a edição de seu relatório sobre compromissos globais porque se deu conta que houve pouco avanço antes da COP-26.
O Acordo de Paris, de 2015, prevê que os cortes de emissão de CO2 impeçam o planeta de aquecer mais de 2,0°C até o fim do século, em relação aos níveis pré-Revolução Industrial. Os cortes globais de emissão somados, porém, colocam o planeta rumo aos 2,7°C.
— Eles estão sendo pressionados por todos os lados: por governos, por sociedade civil e tudo o mais. O Brasil fez um cálculo com uma base equivocada — afirma Rachel Biderman, porta-voz e cofacilitadora da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura. A organização, que tenta articular consenso entre agronegócio e sociedade civil para avanço nas políticas ambientais , não vê chance de o governo brasileiro se alavancar nas negociações em Glasgow.
O governo brasileiro tem a ambição de negociar regras que o favoreçam nos mecanismos de compensação financeira para combate ao desmatamento, mas, sem mostrar comprometimento, é difícil ganhar terreno.
— O mundo não está “comprador” do Brasil. Existe uma clareza de que teve aumento de emissões por desmatamento, que tem menos monitoramento e que há urgente necessidade de ampliar medidas de controle ambiental na fronteira agropecuária da Amazônia, e do Cerrado — diz Biderman.
Para Caroline Rocha, gerente do programa de clima na seção brasileira do WRI (World Resources Institute), a pressão por avanços não é só sobre o Brasil, e o país não deve ser privilegiado nas negociações.
— O esperado do Reino Unido, como anfitrião da COP, é que eles pressionem os países-membros para aumentar as suas ambições, e a a nova NDC do Brasil é uma das que estão aquém das expectativas— diz. — Mas é importante entender que, como a NDC é “nacionalmente determinada”, não existe um mecanismo para impor metas de cima para baixo — explica Rocha.
Ou seja: sem vontade política do governo, nenhuma proposta avança.
Remoção na conta
Além de recalcular sua meta, um expediente que atrapalha a argumentação do Brasil é sua prática de descontar grandes volumes de “remoção” de CO2, por considerar que suas terras indígenas e unidades de conservação são parte do esforço de corte de emissões. Essa prática de reportar emissões “líquidas” menores do que suas emissões “brutas” (veja quadro à esquerda) mascara o fato de que essas áreas protegidas vêm sendo questionadas em projetos de lei e muitas delas já sofrem degradação.
O aumento do fogo nas florestas desde 2019 também coloca o Brasil em situação difícil, porque os incêndios não são computados além do desmate por “corte raso”, subestimando as emissões nacionais.
Uma esperança de avanço na promessa do Brasil surgiu do discurso do presidente Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU, no mês passado, no qual vocalizou a promessa de zerar o desmatamento até 2030.
— Só que isso não está escrito na nossa NDC, então não é um compromisso oficial — diz Herschmann.
— Se o presidente já falou isso em discurso, por que não fazer essa atualização agora? — questiona. Por Rafael Garcia / O Globo