Não faz tempo recebi pelo WhatsApp vídeo, onde Jomar Ruas, nosso decano da confraria Liceu de Letras e Artes de Alcobaça, BA, declamava o poema de Catulo da Paixão Cearense: “A Flor do Maracujá”. Alegrei-me por várias razões. Primeiro, por vê-lo em animada recuperação, mesmo acima dos 92, depois de apanhado por sorrateira e desconhecida virose. Segundo, pela escolha de tão expressiva pérola da literatura cabocla brasileira para nos brindar. Terceiro, pela jovial eloquência que ainda lhe sai de invejáveis pulmões. Quarto, pelo seu sempre vivo sentimento de apreço às coisas boas da vida, à alegria de viver e ao amor a todos que lhe rodeiam.
A mensagem declamada por Jomar remeteu-me a Catulo, de quem ora tomo emprestado seu “Trem de Ferro” para divagar sobre o fenômeno da vida. Esse poema me põe a bordo dos trens da Bahiminas, ainda menino, no meu querido torrão natal e o curso de seus trilhos. Ainda me vejo tocado pelo apito e fumaça das locomotivas que transitavam entre Caravelas/BA e Teófilo Otoni/MG, com grande parada em Nanuque/MG, onde morava Jomar.
Nesse fantástico poema, Catulo – quem sabe iluminado por Einstein – ensina a relatividade sem impor rigores dos algoritmos da ciência. Enaltece a sensibilidade do poeta e a percepção lógica infantil ainda não contaminada pelos dogmas acadêmicos.
No trem em movimento, passavam pelas janelas, “montes, horizontes, matagal cerrado, penedos, rochedos, arvoredos” (sic). A criança imaginou o trem parado, tendo a paisagem em movimento. Passageiros riram em chacota quando dele ouviram essa versão. O poeta interveio, fazendo analogia do trem com a vida: “afinal, todos nós nos enganamos, quando, todos os dias, exclamamos: como é que o tempo passa tão ligeiro!… E nós é que passamos” (sic).
Catulo demonstrou que a lógica do menino é a mesma viciada em todos nós ao murmurarmos que o tempo passa tão ligeiro por nossas vidas. Nesse resmungo admitimos que estamos parados e o tempo passando, quando na verdade nós é que passamos pelo tempo. Ensinou, pois, poeticamente, a lei da relatividade aos zombeteiros passageiros do trem.
Em outras palavras, Catulo induz-nos a refletir sobre nossa vida através do tempo. Enfatiza a questão da velocidade da vida relacionada com o tempo. Mais ligeiros estão os que muito trabalham e nem têm como ver o tempo passar. Para esses, não faz diferença janelas de seu “trem da vida” fechadas ou abertas. Não veem montanhas, nem rios, oceanos, céu estrelado, nem mesmo quem está a seu lado. A paisagem é limitada até a parede mais próxima ou talvez à ponta de seu nariz. Por gosto próprio, aceleram o trem de sua vida, mesmo sabendo que na próxima curva possa desencarrilhar e o tempo nunca mais passar.
Ao contrário, para as crianças e o poeta, a paisagem, o que circunda e envolve, é o próprio tempo. Costumam parar no tempo por conta de uma estrela que brilha mais, de um encontro que acelera o coração, de um perfume ou música que remete a saudoso cenário. Ou fazer da novidade um saber.
Somos nós mesmos que escolhemos a velocidade de nosso trem. Quando jovens, optamos pela velocidade esquecendo das curvas. Haja adrenalina para respirarmos nos momentos em que nem sabemos como chegamos a escapar de um desastre predito pela imprudência! Haja competência e fiel companhia de nosso Anjo da Guarda nas curvas da vida e nas pontes quebradas!
Que bom seria se pudéssemos antever quantas paradas faremos e onde curvas aparecerão no horizonte, quem deixaremos na próxima estação, a quem daremos a mão e trazer a bordo para compartilhar da viagem etc. Muito menos sabemos por antecipação em qual estação nosso trem fará sua última parada.
Catulo não olhou apenas para a janela desafiadora do tempo que ficava, notou e dialogou com os passageiros, companheiros, aprendizes de viagem daquele trem. Viu-se imerso na sabedoria infantil, tida como ilusão, e excluído da ilusão tida como sabedoria pelos “senhores cientistas, sábios e doutores” (sic). Ou seja, o poeta questiona a sabedoria convencional por enxergá-la impregnada de ilusões. E, por outro lado, admite que as ilusões podem estar cheias de razão.
E a viagem de trem não para por aí, pede outras lucubrações. Fernando Pessoa em seu poema “Viajar?” envolve o próprio “eu” nos encantos da viagem: “Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são… A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”.
Quem ainda não leu, ouviu e se emocionou com o poema de autoria desconhecida, mas de largo gosto e conhecimento popular, “Viagem de trem”? Aquele que compara nossa vida a uma viagem ferroviária em vagão de passageiros, passando de estação em estação, envolvidos em alegrias e tristezas nos embarques e desembarques de companheiros!
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opção. [email protected]