Palhaço Rapadura

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Conheci o palhaço Rapadura em hora, lugar e oportunidade incomuns. Confuso e desajustado no horário de Rio Branco, capital do Acre (duas horas mais tarde), fui definitivamente expulso da cama antes das quatro da manhã. Sob o clima do nada-a-fazer, resolvi caminhar pelas ruas centrais da cidade. Absolutamente só, sem outra alma até onde a vista alcançasse, gastava meus neurônios tentando entender porque o pavimento das ruas era de tijolos ao invés de asfalto ou pedra, como usual n’outras cidades.
Não demorou muito, surpreendi-me – na verdade, assustei-me – com um cidadão saindo da rua lateral, indo em direção igual à minha, uns cinquenta metros adiante. De tênis short e camiseta, como eu, parecia em caminhada madrugueira. Apressei o passo para alcançá-lo. A troca de “bons dias” foi a ignição a nosso papo. Apresentei-me como pesquisador da Embrapa, residente em Brasília, a serviço por aquelas plagas. Justifiquei-me com o descostume no fuso horário. Em retribuição, disse ele chamar-se Galindo Sobreira, cearense, morando em Rio Branco há mais de quinze anos. Mais conhecido como Rapadura, palhaço de profissão. Nem precisava dizer. Sua voz e jeito de falar lembrava claramente o palhaço Carequinha e outros tantos valorosos promotores do riso guardados em minha memória.
Empatizamo-nos facilmente. Eu por gostar de circo e ele por afeto a quem ama a profissão. Revelou-me ser casado com a também palhaça Cocada e, com ela, ter dois filhos já rapazotes.
Em torno desse assunto, conduzimos nossa caminhada. Não sei se por imaginá-lo no circo maquiado e em largas vestes coloridas, divertia-me, achava graça em cada palavra e no seu jeito de falar.
Contou-me que, por um bom tempo, a dupla Rapadura e Cocada fora a principal atração Circo Horizonte, a ciganear por lugarejos e cidades pouco figuradas nos mapas. Cocada, além de contraparte nas palhaçadas, lidava bem com malabares e era perfeita no arame. Ele, também, fazia o papel de mágico, contando com o auxílio de Gisele (Cocada, sem a máscara de palhaça).
A luz do dia chegara com a rapidez de confundir relógio. Não nos despedimos sem antes expressar o mútuo prazer do conhecimento. Rapadura convidou-me para conhecer sua residência, onde também funcionava a sede de sua microempresa prestadora de serviços de animação de aniversários e eventos diversos.
Deu-me verbalmente o endereço, Rua Epaminondas Jácome, beirando o Rio. Encontraria facilmente um mini circo, sempre armado, com lona listrada de azul e branco. Prometi a visita no final do dia quando findassem minhas obrigações na Embrapa.
Hospedado no Hotel Guapindaia, calculei não gastar mais que dez minutos de caminhada para chegar lá. Conferi! Entrei, sentei-me numa poltrona de couro, forrada com manta cearense, montada sobre tripé rústico de madeira. Conheci a simpática Gisele, ainda não transformada em Cocada. Pensei comigo, dupla com nomes artísticos bem coerentes: Rapadura, moreno e Cocada, branca.
Conversávamos e ríamos animadamente quando adentraram à sala Jairo e Miró, os filhos do casal, avisando que cenário, iluminação e som já se achavam prontos. Foi quando entendi que teríamos espetáculo naquele início de noite. Enquanto relembrávamos dos bons circos e trupes circenses que andaram pelo Brasil, fui servido de café com leite e beiju de tapioca recheado com castanha-do-pará ralada. Hora passando, Rapadura pediu para Cocada fazer-me sala enquanto ele se arrumava. O espetáculo iniciaria às sete. Enquanto isso, fui levado por Miró a conhecer as instalações.
Um galpão nos fundos abrigava dois camarins, roupeiros, aparelhagem de som, cortinados para cenários e um monte de sucata e coisas próprias de circo. No terreno ao lado, debaixo da lona circular, medindo algo como vinte metros de diâmetro, um palco semicircular ao nível do solo, ligado às coxias. Na meia lua restante, imediatamente ao palco, dez camarotes plantados. Para os fundos, um tablado em aclive, onde pequenos bancos de madeira se arranjavam em curva. Coisa bem feita.
Atuavam ainda nas apresentações, devidamente uniformizados, a vizinha Madalena, costureira, que se ocupava também da bilheteria e da produção e venda de pipoca e guloseimas; um porteiro, um sonoplasta e quatro assistentes de palco. Todos remunerados pela participação na bilheteria. As apresentações ocorriam às quintas-feiras e às tardes de domingo.
Casa quase lotada, o espetáculo começou com o tradicional “respeitável público!” reverberado vagarosamente por Rapadura, sob seu jeito engraçado. No centro do placo, uma cadeira. Ao sentar-se, a cadeira se desmanchou e, caído, uma bombinha em seu traseiro explodiu, liberando névoa de pó branco. Risos de montão. Em suma, um divertido espetáculo, onde não faltaram números de mágica, malabares, equilíbrio no arame, ginástica artística por arte de Miró e Jairo e outras performances sempre muito aplaudidas.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opçã[email protected]