
Caros leitores, as democracias não falham apenas quando há censura ou autoritarismo explícito. Elas também falham quando permanecem em silêncio diante do sofrimento de seus próprios cidadãos. Esse silêncio institucional, muitas vezes travestido de neutralidade ou “rigor técnico”, é uma forma disfarçada de cumplicidade com as injustiças. É um silêncio que grita não de indignação, mas de conivência. Em tese normativa, vivemos em um Estado Democrático de Direito. Temos ouvidorias, corregedorias, defensorias públicas, comissões de direitos humanos, controladorias internas e Ministérios Públicos. A democracia criou mecanismos para se autovigiar, se corrigir, se tornar mais justa. Mas e quando esses mecanismos falham? E quando os canais criados para escutar passam a ignorar? E quando quem deveria defender os vulneráveis se esconde atrás da lentidão, da burocracia ou da conveniência política?
Quando o sistema falha em proteger os vulneráveis, ele se torna cúmplice dos opressores. Omissão também é escolha. Negligência também é ação. E o silêncio institucional, em muitos casos, é a forma mais perversa de violência, porque não deixa marcas visíveis, apenas cicatrizes internas. Essa cumplicidade silenciosa atinge em cheio pessoas com deficiência, servidores adoecidos, trabalhadores vítimas de assédio moral e cidadãos empobrecidos que tentam fazer valer seus direitos. Eles não pedem privilégios. Pedem dignidade. Mas quando batem à porta das instituições, recebem respostas frias, genéricas ou, pior, o não-atendimento. A quem recorrer quando todos os canais parecem desligados?
A filósofa Hannah Arendt dizia que “o mal não é radical, é banal”. Talvez o mal institucional. Ele se esconde nas rotinas, nos protocolos, nos despachos padronizados. O técnico que arquiva uma denúncia grave por “falta de elementos”, o gestor que ignora um pedido legítimo de inclusão, o servidor que deixa de registrar um abuso por medo ou comodismo. Todos esses atos, somados, mantêm de pé uma estrutura que, embora democrática no papel, é profundamente autoritária na prática. A inércia institucional é ainda mais grave quando vem acompanhada de retórica democrática. Discursos sobre “igualdade”, “inclusão” e “cuidado com o servidor” soam como zombarias diante de realidades marcadas por abandono, lentidão, descaso e violência simbólica. As instituições que deveriam proteger tornam-se, muitas vezes, espaços de revitimização. Quem denuncia vira problema. Quem sofre precisa provar, incessantemente, que não está fingindo. E o tempo do sofrimento é sempre atropelado pelo tempo da burocracia.
A democracia sem escuta ativa é uma ficção. Não basta ter canais, é preciso que eles funcionem. Não basta ter leis, é preciso que elas sejam aplicadas com humanidade. Não basta proclamar direitos, é preciso garanti-los inclusive (e principalmente) a quem não tem força política, capital simbólico ou corpo produtivo para ocupar espaços de poder. Não se trata de atacar as instituições. Ao contrário, trata-se de exigir que elas cumpram o papel para o qual foram criadas. A democracia é um organismo vivo. E quando seus órgãos adoecem pelo silêncio, o corpo inteiro entra em colapso. Romper esse silêncio é mais que um direito, é um dever ético e político. E para romper esse silêncio, é preciso coragem. Coragem de falar mesmo quando ninguém escuta. Coragem de denunciar mesmo quando isso custa reputação, saúde ou paz. Coragem de existir em um sistema que prefere que certos corpos e vozes permaneçam invisíveis. Só haverá justiça quando houver escuta. E só haverá escuta quando houver disposição real de ouvir, com o ouvido da razão, mas também com o ouvido da sensibilidade.
*Thales Aguiar é Jornalista, escritor e especialista em Ciência Política