O que realmente nos importa?

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Por Roberio Sulz

Vivemos uma época que merece ser analisada e rearrumada (perseguir um novo rumo), sem dúvida. Em suma, na virada de ano é boa oportunidade para se pensar sobre o que a gente faz e quem usufrui do resultado do nosso trabalho.

A grosso modo, temos a impressão de que muito pouco do que fazemos atinge positivamente o irmão que mora miseravelmente sob palhoça, sem alimento, sem água tratada, sem escola, a quilômetros de uma farmácia ou de um posto de atendimento médico. Se adoecer, ninguém come, nem ele mesmo. Morre famélico e desassistido. São miseráveis de existência esquecida pelos que se preocupam exclusivamente com o valor do dólar, o saldo bancário, a rentabilidade bolsa de valores e dos índices econômicos. Igual ou pior desgraça atinge os pobres africanos e asiáticos que aparecem nas inserções televisivas do “Médicos Sem Fronteiras”! Esses coitados sofridos, aos milhões, são vítimas das guerras tribais estimuladas pelos fabricantes de armas, por diferenças de crenças religiosas e por serem inexistentes ou desprezíveis na sociedade humana formatada pelas elites dominantes. Contam minimamente com a querência e o esforço de abnegados profissionais da saúde, médicos, enfermeiros, biomédicos e farmacêuticos remunerados com salários rasos de subsistência, mas operando melhor e mais humanamente que os ricos profissionais luxuosamente instalados no ar condicionado dos grandes centros urbanos, com clientela VIP, cativa e endinheirada.

Na outra ponta desse terrível arranjo social está o financista (seria ele o desprezível numa sociedade justa?) aplicador na bolsa de valores que pode trabalhar pouco, ou mesmo, nem trabalhar por longo tempo, sem que isso lhe afete os costumes, incluindo desperdício, esbanjamento e conforto. Sua alegria está na cama macia e aquecida, no prato de fina porcelana ricamente recheado, decorado com espuminhas coloridas e riscas de molho em ziguezague, acompanhado de boa bebida importada espumante em taça. Em nenhum momento lhe vem à cabeça de que muito de seu conforto representa o desconforto do próximo. Tampouco qualquer sentimento de culpa!

Os economistas, de pronto, justificariam que o custo do conforto dos privilegiados sociais, em parte, chega ao pobre necessitado pelo retorno dos impostos pagos redistribuídos à população através de atendimento e programas sociais. Quem dera assim fosse. Na verdade, os impostos recolhidos compulsoriamente pelo governo são usados, em sua maior parte, para pagar juros aos banqueiros que se lambuzam de alegria com a dívida interna do país. O que lhes confere independência, tanto quanto dependência dos pobres trabalhadores e pagadores de impostos.

Está claro que a transformação universal do trabalho em moeda – faz tempo, considerado o melhor formato de remuneração –  nunca foi justa. Não e nunca representou honestamente o real valor do esforço físico e mental aplicado pelos trabalhadores envolvidos na produção básica de bens e serviços, gente da base da pirâmide social.

Esse formato de exploração explica porque, no Brasil (não apenas em nosso país!), um por cento da população é rica e milionária contra noventa e nove por cento de compatriotas pobres, em parte significativa, extremamente pobres, e – ainda pior – desempregados sem ter, sequer a chance de trabalhar para ser explorado ainda que recebendo migalhas. É assim que opera ardilosamente o sistema monetário que sustenta a elite e esmaga o trabalhador, ou seja, a conversão do esforço pessoal em moeda, antes de representar uma facilidade operacional, mostra-se um engodo. Esse dramático quadro agrava-se a cada ano, na medida em que cresce a concentração de riqueza nas mãos de poucos e gera pobreza aos montões. Adicione à compreensão dessa situação o fato de que a elite privilegiada aqui e alhures faz de tudo para conservá-lo incólume, apoiando e financiando governos, políticas e movimentos subservientes a seus interesses e contrapondo-se ferozmente a qualquer movimento em favor de um melhor equilíbrio social. Usam e abusam da mídia, do poder judiciário e de todos os instrumentos que façam lavagem cerebral e convertam os próprios explorados em aliados. É como diz o jargão: circo e pão para ofuscar a enganação.

Aí estão evidenciados alguns dos males dessa injusta distribuição de benesses sociais: o desperdício decorrente do esbanjamento do consumo, a ostentação do poder com a banalização dos homicídios, o descompromisso com a qualidade ambiental e o futuro das sociedades e o descarado preconceito a desumanizar os excluídos.

Senão, observemos a infeliz estatística de que uma em cada sete pessoas no mundo passa fome e mais de 20 mil crianças com menos de cinco anos morrem todos os dias por conta de desnutrição. Enquanto isso, o montante de alimento desperdiçado no planeta daria para alimentar a população mundial famélica. São aproximadamente um bilhão e quinhentos milhões de toneladas de alimentos, ou para ser mais claro, um terço de toda a produção mundial que se joga fora nos países ricos todos os anos como descarte de reservas de alimentos com prazo vencido, bem provável em decorrência de hábito consumista irresponsável devido ao poder de seletividade dos mais abastados e até por inadequadas práticas comerciais, de transporte e armazenamento. E – pasmem – caros leitores, esse desperdício, repito, é mais que suficiente para alimentar nossos irmãos famélicos mundo a fora.

É muito importante nesta virada de ano que façamos séria reflexão e assumamos o compromisso de adotarmos uma simplificação em nossos costumes, consumindo apenas o necessário, de jamais construirmos nossa alegria na desnecessidade, no exagero. Se difícil, que por coragem experimentemos um programa progressivo de não esbanjamento nas aquisições. Que não compremos objetos ou máquinas, nem vestuário e veículos que fiquem guardados sem uso. Tomemos como promessa moral ou até religiosa evitar qualquer forma de desperdício. Que não contribuamos para a degradação ambiental, nem para antecipar a morte de nosso planeta, que equivale à liquidação de nosso futuro.

Roberio Sulz é biólogo, biomédico e professor com licenciatura plena em Ciências biológicas (UnB), MSc. (University of Wisconsin, USA). Membro Correspondente da ALAS –  Academia de Letras e Artes do Salvador/BA.  [email protected]