O Desembargador

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Por Roberio Sulz*

Caiu nas mãos do desembargador Gustavo Heliodoro, do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, Capital, recurso interposto pelo réu Sócrates Medeiros à decisão de Juiz do Trabalho relacionada a ação trabalhista em que figura como autora Marli dos Santos. Na ação a autora reclama ter sido despedida sem justa causa de seu emprego de doméstica na residência do réu, onde trabalhara por mais de vinte anos, não sendo legalmente remunerada pelas parcelas indenizatórias legais, nem pelas horas extraordinárias efetivamente cumpridas, férias não gozadas, descanso semanal, tampouco registro formal em sua carteira de trabalho. Reclama ainda indenização por danos morais resultantes de tratamento desmoralizante e humilhante nas demandas de serviço. Por fim, sendo ela negra, denuncia-o por preconceito racial consequente dos modos e termos rebaixantes preconceituosos habituais nos diálogos domésticos.

O juiz de primeira instância, reconhecendo as provas apresentadas e os testemunhos prestados, julgou procedente a ação, condenando o réu, além das multas relativas ao não registro da relação empregatícia na carteira de trabalho, à indenização em favor da autora no valor de R$ 241.000,00, mais as custas processuais.

O réu interpôs recurso da sentença ao Tribunal Regional do Trabalho, alegando vício, fragilidade e tendenciosidade nas provas apresentadas pela autora e inconsistência nos valores calculados.

O desembargador Gustavo Heliodoro assim se manifestou no processo:

“Vistos os autos etc…

Não tivesse eu pessoalmente conhecido as partes do presente processo, poderia me imbuir de dúvida quanto às relações entre o réu e a autora, sua ex-empregada doméstica por mais de vinte anos. O senhor Sócrates Medeiros sempre foi conhecido e afamado como homem rígido em seus costumes, irritadiço quando contestado ou perturbado em sua rotina; introspecto em seus pensamentos e de raras e dificultosas relações sociais. Solteirão sem sorriso nos lábios, nunca se o viu ou se o soube acompanhado por alguém de sua querência.

Fez do magistério sua atividade cotidiana e principal. Lecionou praticamente com exclusividade para um colégio privado, de orientação religiosa tradicional, tocado por freiras, o qual ainda oferecia internato optativo tanto para meninos como para meninas. Professor de química, exigia alunos em pé e perfilados ao lado de seus assentos quando adentrava nas salas de aula, além de atenção absoluta e silenciosa durante sua exposição verbal. Cobrava dos alunos, com truculência humilhante, o dever de casa, punindo com abusivo rigor os eventualmente inadimplentes. Religioso do tipo carola chegava à escola antes das seis da manhã para assistir à missa celebrada diariamente na capela interna por padre também do quadro docente da instituição.

Apesar de todo esse perfil, desvirginou e engravidou Marli, sua adolescente empregada doméstica que mal completara dois meses no emprego. Foi das poucas vezes em que se o sabe ter arrependido de algum comportamento. Contrariando suas autoproclamadas convicções religiosas e morais, forçou-a ao aborto. Ameaçou-a de demissão, mas não levou a cabo a ameaça temeroso de protagonizar escândalo social. Louvando-se em seu prestígio junto às organizações religiosas, conseguiu, fazer Marli parir em casa sob assistência de uma freira parteira e abandonar o recém-nascido num orfanato para nunca mais dele ter notícia.

Sem pai nem mãe declarados, a criança obteve registro formal sob adoção de uma empregada do próprio orfanato. Já crescido, o rapazote conseguiu bolsa de estudos com direito a internato no educandário onde lecionava o professor Sócrates. Por coincidência ou infortúnio, teve-o como professor de química no primeiro ano do ensino médio. Por mais esforço que fizesse, o jovem aluno não conseguia aprender química nos moldes lecionados. Suas notas de avaliação naquela matéria sempre ficaram abaixo dos valores exigidos, não conseguindo média anual suficiente para aprovação, sequer na prova final de recuperação. Apelou para o bom senso do professor, alegando sua aprovação e boa avaliação nas demais matérias e no comportamento como aluno interno. De nada adiantou. Fiel a seus rígidos princípios, professor Sócrates reprovou sem arrependimento o menino, fazendo-o assim perder, além de um ano de escolaridade, a bolsa de estudos e do internato. Compulsoriamente foi transferido para um colégio público. Voltou a residir com sua mãe adotiva na favela de Paraisópolis e enfrentar as agruras sacrificantes impostas aos excluídos urbanos.

Não obstante essa situação, o rapaz deu seguimento a seus estudos, não mais sendo reprovado, recebendo incentivadores elogios de seus professores. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, tornou-se advogado e, por concurso, galgou o cargo de Juiz do Trabalho, mais tarde alcançando a magistratura desta Corte.

Isto posto, declaro-me, por razões familiares, impedido de julgar o presente recurso, encaminhando-o para nova distribuição”.

O referido processo foi julgado por outro desembargador que a imputou pena ainda maior ao réu. Derrotado, professor Sócrates reviu seu comportamento social, renunciou a sua empáfia, seu autoritarismo e sua arrogância.

*Roberio Sulz é biólogo, biomédico e professor com licenciatura plena em Ciências biológicas (UnB), MSc. (University of Wisconsin, USA). Membro Correspondente da ALAS –  Academia de Letras e Artes do Salvador/BA.  [email protected]