O Cego do Óbvio: quando a verdade se esconde no que é evidente

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Por Henrique Matthiesen*

(Frase inspiradora: “O óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar.” — Clarice Lispector)

O óbvio tem um poder paradoxal: impõe-se pela clareza e, ao mesmo tempo, dissolve-se na familiaridade. Aquilo que está diante de nós — transparente e indiscutível — tende a se tornar invisível justamente por não exigir esforço para ser percebido. É nesse terreno da aparente simplicidade que se esconde uma das maiores armadilhas da consciência humana: confundir o que é visto com o que é compreendido. O olhar, por si só, não garante a visão. É preciso atravessar o espelho do costume para perceber o essencial.

Clarice Lispector, com sua sensibilidade filosófica, revela nessa frase um mistério da existência: a verdade não se disfarça — ela se revela demais. O excesso de presença a torna banal; o excesso de luz cega. A mente humana, acostumada a procurar o complexo, tende a desprezar o evidente. Buscamos significados nas sombras, nas entrelinhas, nas camadas profundas — e esquecemos que o essencial, como diria Saint-Exupéry, autor de O Pequeno Príncipe, é simples. O óbvio é o lugar onde a verdade repousa, mas é também onde a indiferença a adormece.

Vivemos em uma era saturada de informações e carente de percepção. Vemos tudo, mas não enxergamos nada. As palavras, as imagens e os gestos nos cercam, mas raramente detemos o olhar no que realmente importa. É mais fácil perder-se no labirinto das interpretações do que suportar a nudez do real. O óbvio exige coragem — a coragem de olhar o simples sem adornos, de reconhecer que, por trás daquilo que sempre esteve ali, há uma verdade que talvez preferíssemos não saber.

O óbvio é o espelho da consciência: quanto mais límpido, mais difícil de encarar. Por isso, tantas vezes, escolhemos a cegueira confortável em vez da lucidez dolorosa. Não enxergar o que é evidente é um modo de autopreservação — um gesto de resistência diante daquilo que ameaça desmontar nossas ilusões. Reconhecer o óbvio é admitir que o mundo não é tão enigmático quanto gostaríamos de crer — e que, muitas vezes, a verdade que procuramos com sofisticação filosófica já estava impressa na superfície da vida.

Há uma beleza trágica nessa constatação. A verdade não se esconde nos labirintos da metafísica, mas na rotina, no gesto repetido, na simplicidade do cotidiano. Ela está no silêncio depois das palavras, no intervalo entre um pensamento e outro, naquilo que não precisa ser explicado. E, ainda assim, continuamos a procurá-la longe, como se a distância garantisse profundidade. Somos exploradores do óbvio, perdidos na tentativa de descobrir o que sempre esteve diante de nós.

Clarice nos convida a despertar do automatismo da percepção. O desafio não é encontrar novas verdades, mas reaprender a olhar o que sempre esteve ali — a ver de novo o que já víamos, mas sem enxergar. É um chamado à desautomatização da alma, à retomada da sensibilidade diante do real. O óbvio, quando enfim é visto, deixa de ser óbvio: torna-se revelação.

Enxergar o óbvio é, talvez, o exercício mais revolucionário da consciência. É o momento em que a simplicidade se transforma em abismo, em que o cotidiano se revela sagrado. E, quando isso acontece, compreendemos que a verdade nunca nos enganou — fomos nós que, por medo ou distração, desviamos o olhar.

*Henrique Matthiesen é Formado em Direito e Pós-graduado em Sociologia.

 

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