“Estou com ele há mais de 40 anos e estarei com ele até o fim. Foi o que prometi”, disse sua esposa, Lucía Topolansky

Joaquim de Carvalho é Colunista do 247, foi subeditor de Veja e repórter do Jornal Nacional, entre outros veículos. Ganhou os prêmios Esso (equipe, 1992), Vladimir Herzog e Jornalismo Social (revista Imprensa). E-mail: [email protected]
Pepe Mujica está em seus momentos finais. Eis um cidadão que fará falta. Pela coragem, pela luta em prol da democracia, pela coerência, pelo humanismo.
Mujica tem metástase de um câncer que começou no esôfago e, por conta de seu estado de saúde, deixou de votar neste domingo nas eleições departamentais.
Sua esposa, a ex-vice-presidente Lucía Topolansky, disse que seu marido e ex-presidente José Mujica “está no platô, está nas últimas”.
“Isso já tem uma conclusão precipitada”, explicou Topolansky em uma entrevista à Rádio Sarandí na noite de domingo, acrescentando que sua comitiva está “tentando fazer isso acontecer da melhor forma possível”.
Ela então reiterou que esta é uma “situação terminal” e enfatizou que Mujica está recebendo “cuidados paliativos”.
Em janeiro, Pepe revelou que o câncer havia espalhado por todo o seu corpo e que ele não faria mais tratamento.
Republico aqui um artigo do jornalista Carlos Müller, doutor em ciências sociais pela UnB, que fará comigo nesta terça-feira uma entrevista com o jornalista, fotógrafo e cineasta argentino Fabián Restivo, autor do livro Palavras para depois: conversas com Pepe Mujica (editora Coragem), traduzido pelo jornalista Rogério Tomaz Jr.
1 – José Alberto Mujica Cordano, mais conhecido como Pepe Mujica é uma personalidade extraordinária. Em todos os sentidos. Ex-presidente do Uruguai, além de ex-deputado e ex-senador, ex-guerrilheiro urbano e ex-preso político. Folclórico pequeno produtor de flores, manteve uma vida frugalíssima com sua esposa na chácara de “Rincón del Cerro”, próxima a Montevidéu, que não trocou pela residência oficial ao se tornar presidente e seguiu deslocando-se num icônico fusca azul celeste ao invés de carros de protocolo. Certamente é o uruguaio mais conhecido internacionalmente.
Personagem de livros, e documentários exibidos por todo o mundo e dirigidos por cineastas famosos, ao longo das últimas décadas foi interlocutor de personalidades de grande envergadura, governantes de potências perto das quais seu país tem uma população e uma economia menores que as de um bairro.
Pepe Mujica também tem sido procurado por cientistas, filósofos, e jornalistas cujos livros venderam mais que toda a produção editorial uruguaia durante muitos anos. Um desses livros é Palavras para depois, composto por transcrições de dez dias de conversas com o jornalista, fotógrafo e cineasta argentino Fabián Restivo. Algumas passagens têm um tom um tanto reverencial, a ponto de desistir de insistir em perguntas que aparentemente deixaram Pepe Mujica constrangido em responder. Outras são de um coloquialismo intimista raro em obras do gênero. Mas não há como o leitor não se deixar envolver.
“Sou um velho pelotudo, esquisito”, reconhece logo de início, desdenhando o tratamento respeitoso com que é abordado com frequência. Como não pensar num tio velho, meio ranzinza, meio sarcástico inclusive consigo mesmo, cheio de anedotas, certezas e dúvidas; com frases repletas de palavrões, que alternam ideias que claramente são fruto de longas reflexões com comentários desconcertantes sobre certas personalidades mundiais com as quais teve algum contato e opiniões pouco ortodoxas para um líder político de esquerda em relação a assuntos como o funcionalismo público.
O prestígio internacional, excepcional em se tratando do presidente de um pequeno país do “Sul Global”, não é inteiramente compartilhado por seus compatriotas. Ao deixar a presidência, aos 79 anos, tinha uma aprovação popular de 63%, algo invejável para qualquer governante. As avaliações feitas por ele próprio em entrevistas ao final do mandato foram tão desconcertantes quanto tantas atitudes anteriores e posteriores, mesclando orgulho quase megalômano e autocrítica impiedosa: “Se fez umas quantas coisas… Consegui que Uruguai exista, por exemplo… O coloquei no mapa”… disse para logo reconhecer que seu governo fez pouco (menos que o prometido na campanha eleitoral em relação à infraestrutura, por exemplo): “Ese fue otro estupendo fracaso“, admitiu.
Entre os uruguaios que não aprovam o desempenho de Pepe Mujica na presidência estão alguns dos mais antigos companheiros de militância no Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros. Ele se tornou o mais célebre e o que chegou a cargos mais altos que todos, embora nunca tenha sido um dos comandantes guerrilheiros.
Em geral, não é uma questão de egos frustrados. As críticas vão muito além de idiossincrasias pessoais e de divergências pontuais em relação a ações de governo. E são anteriores à sua eleição para presidente. A mais profunda tem origem na decisão dos Tupamaros sobre os rumos de seu movimento após a redemocratização do Uruguai. Havia duas grandes correntes com matizes diferentes em cada uma delas.
Um grupo defendia a reorganização política, mas mantendo uma linha extraparlamentar, alguns militantes até propunham seguir numa semiclandestinidade. Outra corrente entendia que o projeto revolucionário fora derrotado em grande medida pelo distanciamento popular em relação à sua pregação. Uma questão derivada, que envolvia principalmente os defensores da institucionalização, era se o grupo reorganizado deveria se integrar ao Frente Amplio – a coalizão de esquerda que se tornaria a mais longeva frente política do gênero na América Latina.
Pepe Mujica se tornou um dos expoentes deste último grupo, organizado como Movimiento de Participación Popular (MPP) e integrado ao Frente Amplio. Foi assim que se elegeu parlamentar e presidente e ajudou a eleger o atual presidente, Yamandu Orsi. Entre as principais figuras do outro grupo estava Jorge Zabalza, um líder histórico dos Tupamaros que, apesar de descendente de família tradicional e rica para os padrões uruguaios, nunca renunciou ao projeto revolucionário e até sua morte, em fevereiro de 2022, acusou Pepe Mujica de ter feito “uma opção política pelo capitalismo”.
2 – Livros como Palavras para depois são uma empreitada arriscada. A informalidade dos diálogos, a personalidade do depoente principal e a atitude do interlocutor podem ser reveladores sobre a pessoa e iluminadores do período histórico em que viveu e no qual teve algum protagonismo. Mas podem levar à frustração se o personagem que dá o depoimento estiver demasiado preocupado em “como vai sair na foto”. No caso das “Conversas com Pepe Mujica” acontecem as duas coisas alternadamente.
A medida em que se avança na leitura, fica claro que Pepe Mujica não se preocupou em se preparar para abordar temas que com certeza viriam a ser tratados. São várias as situações nas quais admite que não têm informações a respeito do assunto levantado, que dá respostas aproximadas ou simplesmente responde: “Não sei” ou de forma ainda mais coloquial: “que sé yo!”.
Sobre alguns temas as repetidas digressões e as alusões históricas sugerem longas reflexões. É o caso da preocupação com o futuro dos jovens. É o caso, também, da visão crítica sobre aspectos do marxismo como a ideia de que “mudando as relações de produção e distribuição teríamos um novo homem”.
O companheirismo entre Pepe Mujica e a esposa Lúcia, que participa apenas pontualmente das conversas, é bastante evidente, com momentos de mútuo afeto e respeito, quase sempre matizados por algum comentário bem-humorado de parte a parte com o objetivo de evitar um tom solene.
Ainda mais frequentes que as reflexões são as tiradas repentinas, às vezes mordazes e gaiatas, às vezes revelando um fundo de amargura.
Conselho aos jovens: “Errar, eles vão errar. Mas não façam as cagadas do nosso tempo. Precisam ser originais, que façam outras cagadas, não as nossas, porque senão teremos vivido à toa. Cada geração tem que ter as suas cagadas, mas não recair nas mesmas que as anteriores fizeram.”
Sobre tecnologia e valores: “Para mim, essa civilização digital maximiza uma característica do nosso tempo: avançamos um absurdo em tecnologia, mas não em valores. Nisso estamos para el culo. Então a humanidade parece um macaco com uma metralhadora. Porque temos uma ferramenta maravilhosa, mas a usamos para merda”,
Sobre funcionários públicos: “Os funcionários públicos têm que ser os melhores porque lidam com o bem público. E não como são agora, quando o cara senta no meio de outros vinte, toma um café e não faz nada; mas a culpa é dele ou será que temos um sistema ruim? Porque sabemos que o homem precisa de chicote e recompensa. Não posso tratar o idiota da mesma forma que aquele que precisa ser reconhecido”.
Sobre o PT: Eu vi o próprio PT merda depois das eleições. Está destruído. O PT não é mais o que era; agora existe por causa do Lula, mas sem ele infelizmente não existe.”
Sobre a mentira e a verdade: “Há algo que Goebbels disse, de que uma mentira contada mil vezes… O problema é que uma verdade, uma boa, da qual você está convencido, também tem que ser repetida e repetida. A esquerda não insiste…na esquerda somos péssimos comunicadores”.
Sobre a Igreja Católica: “A igreja como instituição terrena, é um poder. Faz tempo que inventou o comitê central, o colégio de cardeais, mas te vende com história, com beleza. Os caras se reúnem, discutem, traçam o limite e veem. Se acertarem, é o Espírito Santo. Se errarem, é erro humano. Uma coisa bárbara”.
Sobre Vladimir Putin: “…conversei com Putin na embaixada russa em Brasília… Putin é um cara legal, mas não consigo arrancar nada dele. É como falar com uma estátua, porque ele nem sequer faz gestos. Nunca vi um cara tão aparentemente inerte… Uma máquina, um autocontrole de tudo. É brutal”.
Diante da pergunta “Como você chega a essa sua idade com tantas contradições?”: “Não é que você consiga administrá-la. Você a suporta, o que não é a mesma coisa. Você aguenta porque existe uma força superior chamada vida. Ao fim e ao cabo, manda o instinto. Ao fim e ao cabo, a resposta vem da biologia, sim, quando as batatas estão assando. E é assim, tem muita coisa contra você…Você chega à conclusão de que, quanto mais você faz, mais a angústia se multiplica. Para ser feliz é preciso ser ignorante”.
Sobre o ser humano: “… nós temos dentro uma coisa desprezível, presa de um egoísmo brutal, e se não estamos atentos, se não gerarmos freios culturais, somos um desastre. Não tem que poetizar o homem, não, não, devemos saber com o que estamos lidando: com o maior predador que existe porque é inteligente, não que seja forte, é inteligente e usa a inteligência para foder.” (aqui se está diante de um deslize da tradução, pois joder no espanhol coloquial não significa copular, mas algo como “encher o saco”)
Sobre o que é a vida: “… a vida é, em última análise, uma luta contra a morte… e no âmbito dessa luta, e ele colocou a coisa mais bonita que existe: o amor. Porque a luta da vida contra a morte é o amor… Não há como não se apaixonar pela jornada do homem na Terra…Porque é uma coisa espetacular, e é perigoso porque você se apaixona”