Mulher vai receber indenização de R$ 500 mil após ser mantida em condição análoga à escravidão na Bahia, diz MPT

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Valor deverá ser quitado até fevereiro de 2025, prazo limite para a venda de dois imóveis que pertenciam à empregadora, sob pena de multa de 50% desse valor. Feita de escrava por 44 anos na Bahia, mulher teve útero retirado e não podia sair de casa

Conforme o MPT-BA, Maria (nome fictício usado para preservar a identidade e a segurança da vítima), chegou à casa de Heny Peluso Loureiro ainda criança, quando tinha apenas 6 anos, para trabalhar como doméstica.

Mulher vai receber indenização de R$ 500 mil após ser mantida em condição análoga à escravidão na Bahia — Foto: Divulgação

Mulher vai receber indenização de R$ 500 mil após ser mantida em condição análoga à escravidão na Bahia — Foto: Divulgação

De acordo com o órgão estadual, quando chegou ao imóvel, a vítima não tinha certidão de nascimento. O documento foi obtido pela patroa anos depois, com informações falsas.

Como não existia nenhuma informação sobre a origem dela, apenas registros de que não falava português quando chegou, suspeita-se que Maria tenha origem no continente africano.

Cidade de Porto Seguro, no extremo sul da Bahia — Foto: Divulgação/ Prefeitura de Porto Seguro

Cidade de Porto Seguro, no extremo sul da Bahia — Foto: Divulgação/ Prefeitura de Porto Seguro

Durante os 44 anos em que foi mantida em condição análoga à escravidão, ela não estudou, não fez amizades, nem teve relacionamento amoroso. A vida dela era voltada totalmente para servir à família de Heny Peluso Loureiro, sem receber nada por isso, além de casa e comida.

Após a morte da patroa, Maria foi morar com um dos filhos da ex-empregadora. O homem tentou cadastrar Maria para receber benefícios sociais. A situação chamou a atenção da assistência social e a equipe do Centro de Referência de Assistência Social (Creas) visitou a casa de Maria para encaminhar o pedido de inclusão no Cadastro Único (CadÚnico).

Além disso, ela sofreu maus-tratos do então patrão e decidiu pedir ajuda. O acolhimento veio primeiro por meio de uma amiga da vizinhança, depois por uma advogada que decidiu buscar órgãos públicos para denunciar a situação.

O MPT-BA abriu inquérito para apurar a situação e, depois da investigação e de tentativas frustradas de acordo extrajudicial, o órgão ingressou com uma ação civil pública. Em paralelo, a advogada da vítima entrou com um processo na Justiça do Trabalho para cobrar o pagamento das verbas trabalhistas.

No fim do mês passado, o MPT-BA e os representantes do espólio da patroa e os dois filhos chegaram a um acordo, que teve participação da vítima. No documento assinado por todos e já homologado pela Justiça do Trabalho, os empregadores não reconheceram culpa, mas se comprometeram em pagar R$ 500 mil de indenização por danos morais, além de regularizar a carteira de trabalho de Maria.

A indenização deverá ser quitada até fevereiro de 2025, prazo limite para a venda de dois imóveis que pertenciam à empregadora, sob pena de multa de 50% desse valor. Até lá, os dois filhos de Heny devem manter o pagamento de um salário mínimo mensal.

MPT-BA — Foto: Divulgação

MPT-BA — Foto: Divulgação

Nº de casos cresce na Bahia

Segundo o MPT-BA, a possibilidade de obter autorizações judiciais para fiscalizar as condições de trabalho em residências e uma maior atenção da sociedade para o tema ocasionou no surgimento de mais denúncias, na realização de operações de fiscalização e no resgate de trabalhadores domésticos em situações análogas à escravidão.

O órgão estadual aponta, inclusive, um indicador dessa realidade: cerca de 20 baianos integram, desde o primeiro semestre deste ano, a Lista Suja – cadastro dos empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Os casos de trabalho análogo à escravidão são investigados pelo MPT-BA e as vítimas são resgatadas. Em seguida, o órgão conclui inquérito e tenta negociar o ajuste de conduta, porém, se não houver acordo extrajudicial, o caso é levado para a Justiça do Trabalho.

A procuradora Manuella Gedeon, que coordena as ações de combate ao trabalho análogo à escravidão na Bahia, destacou que, a partir de 2020 houve um aumento significativo no número de denúncias recebidas, o que possibilitou a fiscalização e apuração dos casos.

“Há um problema antigo e uma cultura antiga no nosso país de casos de trabalho escravo. Nós resgatamos mulheres e homens que estão nessa condição há 30 ou 40 anos, em casas de família, trabalhando sem nenhum direito. Então, isso sempre existiu, mas agora a equipe está conseguindo chegar”, reiterou.

Na Bahia, o combate a essa prática é realizado sempre em rede, por meio da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-BA), com participação efetiva do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego do Governo Federal, Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Governo do Estado e Polícia Rodoviária Federal, dentre outras instituições. Fonte: G1/BA

Vítima não se lembra do passado com a família

Vítima não se lembra do passado com a família Crédito: Divulgação MPT

No ano em que a pequena Maria*, de seis anos, chegou a Porto Seguro, no extremo sul da Bahia, a abolição da escravatura já tinha sido sancionada há mais de nove décadas. A lei, no entanto, não foi um impeditivo à vida que ela levaria por 44 anos, inserida em condições de trabalho escravo: sem direito ao próprio corpo ao ter o útero retirado sem consentimento, sem direito a sair de casa, a ter um nome verdadeiro, sem acesso à educação e sem direito à memória. Foi dessa situação que, agora aos 50, Maria foi resgatada após atuação conjunta do Ministério Púbico do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia Federal e outros órgãos. Ela deve receber R$ 500 mil em indenizações.

A história da chegada de Maria na Bahia é incerta. Familiares dos patrões que a mantiveram como escravizada apontam que a menina chegou com o pai e a irmã em uma hospedaria no município de Canavieiras, após uma longa viagem de navio que teve como origem da rota um país do continente africano. Maria não sabia falar português e o pai, sem ter condições de manter as filhas, abandonou-as no estabelecimento. Enquanto a irmã foi adotada por uma mulher, Maria foi levada para Porto Seguro com Heny Peluso Loureiro, que viria a ser sua patroa.

Desde os primeiros momentos da chegada na casa de Heny, Maria foi tratada não como uma criança que precisava de cuidados, mas como uma escravizada, ficando encarregada de limpar, cozinhar e servir tanto em Porto Seguro como na fazenda da família, em Itabuna.

“Ela não tinha uma certidão de nascimento, então essa senhora fez o documento com nomes fictícios do pai e da mãe. Ela teve muita dificuldade para aprender português e não tem nenhuma memória de antes. Não lembra do pai e nem da família. Ela tinha um quartinho para dormir na casa da patroa, mas nunca foi dada a ela a permissão de sair. Ela só podia sair junto com Heny e, com o tempo, perdeu a vontade. Quando se cresce sem liberdade, isso acaba sendo natural”, conta Marta Barros, advogada da vítima.

Sem acesso à educação, Maria não aprendeu a ler, escrever ou reconhecer cédulas de dinheiro. Por causa disso, passou por duas situações emblemáticas de violação de direitos: a perda do útero e a solicitação de benefícios em seu nome, sem que ela nunca tenha consentido nenhum dos dois. “Ela foi submetida a uma cirurgia de retirada do útero sem que entendesse o que isso implicava. A família alegou que ela estava com mioma, mas ainda assim ela tinha que saber e entender que não poderia mais ter filho e que isso ia impactar a vida dela toda”, defende a advogada.

“Nessa época em que eles tiraram o útero dela, ela ficou recebendo um auxílio por incapacidade temporária, mas ela nunca teve acesso a esse dinheiro também. Eles chegaram a solicitar o Bolsa Família, mas, no processo, funcionários do Centro de Referência da Assistência Social (Cras) perceberam algumas inconsistências”, acrescenta Marta Barros.

Momento-chave

É nesse ponto que o momento de virada na vida de Maria começa a ter início. Após a morte de Heny, que havia prometido a ela uma casa antes de morrer, Maria começou a ser um incômodo para os filhos da patroa: Joaquim Neri Neto e Maiza Loureiro Nery Santos. Durante uma visita do Cras, Joaquim chegou a separar um espaço na casa no intuito de enganar os assistentes sociais ao afirmar que Maria vivia ali, mas foi desmascarado e denunciado. Como resultado, a vítima foi expulsa da casa pouco tempo depois.

Desalojada, Maria foi amparada por uma amiga que conheceu no próprio trabalho, que chegou a ajudá-la a morar em uma casa de aluguel. Depois da investigação e de tentativas frustradas de acordo extrajudicial, foi necessário ingressar com uma ação civil pública. Em paralelo, a advogada de Maria ingressou com um processo na Justiça do Trabalho cobrando o pagamento das verbas trabalhistas.

No fim do mês passado, o MPT e os representantes do espólio da patroa e os dois filhos chegaram a um acordo, que teve a participação da vítima. No documento assinado por todos e já homologado pela Justiça do Trabalho, onde a ação corria, os empregadores não reconhecem culpa. Segundo Camilla Mello, procuradora do MPT que atuou no caso, eles defendem que a vítima era “como se fosse alguém da família” e, por essa razão, não haveria necessidade de pagamento de salário.

Essa justificativa, segundo Camilla Mello, não surte nenhum efeito diante do caso. “A eventual afetividade inerente ao trabalho doméstico jamais justificará a exploração. A alienação da força de trabalho somente é permitida mediante remuneração e garantia dos direitos básicos, e a investigação do MPT apurou um trabalho verdadeiramente indigno, degradante, que coisificou a existência de um ser humano. Configurou-se o trabalho análogo ao de escravo principalmente em face da condição degradante, que nega a dignidade humana, e das jornadas exaustivas, uma vez que a vítima estava 24h à disposição da família dos patrões, todos os dias da semana, todos esses 44 anos”, ressalta.

Apesar do não reconhecimento, os patrões se comprometeram a pagar R$500 mil a título de indenização por danos morais e a regularizar a carteira de trabalho de Maria. O valor terá que ser quitado até fevereiro de 2025, prazo limite para a venda de dois imóveis que pertenciam à empregadora, sob pena de multa de 50% desse valor.

Vida iniciada aos 50

O primeiro contato de Maria com a advogada Marta Barros se deu após a denúncia feita pela amiga. Introspectiva e com dificuldade de fala, aquele foi o momento em que Maria começou a entender o que tinha vivido, conforme conta a advogada. “Ela ficou muito emocionada quando começou a relembrar algumas situações. Quando ela relatava, ali ela entendia que tinha sido vítima de violação de direitos. Ela tem muita dificuldade de leitura externa por conta dessa bolha em que viveu”, afirma.

Durante o processo trabalhista e judicial, que durou cerca de dez meses, Maria foi amparada por uma rede de apoio e está trabalhando como doméstica, de carteira assinada, além de ter iniciado os estudos em uma escola e se alfabetizado. Ela também está vivendo o primeiro relacionamento amoroso. Para a advogada, que se tornou uma amiga, a alegria de iniciar um novo capítulo da vida de Maria é uma alegria para si também. “Eu me sinto muito honrada hoje de ter feito parte de tudo isso”, declara.

*Maria foi o nome fictício atribuído à vítima, com intenção de preservar sua identidade verdadeira.Por Larissa Almeida / Correio24horas

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