Roberio Sulz
Na certidão de nascimento emitida pelo Cartório de Registro Civil de Itapecerica/MG tinha o nome de Matusalém. Porém, como costume mineiro, ninguém o conhecia por outro nome, senão Mozalém. Um tipo diferente entre os itapecericanos, mais alto que a média local, branco pálido, olhos claros de pouco brilho, cabelos louros ralos lissótricos e caídos até as orelhas. Morava com sua mãe idosa, dona Êda, quem ainda cozinhava, lavava a roupa e fazia crochê na sombra da tarde. Era segredo, mas todos sabiam ser Mozalém fruto das travessuras de um padre polonês residente em Betim que, ao tomar conhecimento da gravidez de Êda, fiel carola e colaboradora de sua igreja, a despachou para Itapecerica, onde o fiel amigo padre Dulinho a empregou como funcionária da paróquia São Francisco e cuidou por algum tempo de sua vida e de seu rebento.
Mozalém encarava qualquer trabalho para amealhar algo útil ao abastecimento sua humilde casa, fossem uns trocados, uma xícara de açúcar, de farinha de trigo, feijão, arroz etc. Quando não achava desses bicos, se fazia disponível sentado num tamborete à porta da barbearia de Ticlin, onde também atuava nos cortes mais simples e mais baratos feitos a máquina.
Embora de boa musculatura, ossatura facial saliente fazendo-se lembrar de uma estátua grega, Mozalém não era de se meter em brigas. Pelo contrário, era dramaticamente medroso, especialmente de fantasmas e figuras do além. Não duvidava nem um pingo de lobisomem, mula sem cabeça, gnomos, vampiros etc. Tremia sob raios e trovoada. Reconhecidamente frouxo, passava longe de pessoas briguentas, portadoras de armas na cintura e afamadas pela maldade. Dormia de luz acesa e no mesmo quarto de sua mãe, a quem pedia para não cair no sono antes dele. Em suma, morria de medo de morrer.
Mozalém aproveitava as ocasiões festivas da cidade para oferecer-se com balde na mão e panos no ombro a lavar os enlameados veículos dos visitantes vindos pelas estradas de terra. E não lhe faltava freguês.
Foi num segundo domingo do mês de julho, durante a festa de São Bento padroeiro que, ao lavar um automóvel Aero Willys, notou no porta-malas uma caixa de madeira forrada com pano e papelão maior que um engradado de cerveja. Pesada que não a conseguira mover facilmente; exalava cheiro esquisito e minava sangue por baixo. Vencido o medo pela curiosidade, abriu parte da tampa e notou um amontoado disforme de carne. Bateu-lhe vontade de vomitar. Vieram de pronto à mente perguntas mil, algumas inocentes, outras horripilantes. Seria carne para produção de espetinhos de algum pretenso vendedor ambulante da festa? Carne de caça para comércio clandestino? Ou (ick!) uma pobre criança esquartejada vítima de algum assassino, destinada a desova? Arrepiado, desistiu de limpar aquele compartimento. Trêmulo, dedicou-se às poltronas, painel, assoalhos etc. Mas não se conteve na agonia. Dirigiu-se à Delegacia de Polícia, contou o achado a Cristiano Pena, delegado improvisado e provisório da cidade. Não, sem acrescentar ter ouvido insistentes gemidos de dor provenientes do porta-malas, enquanto limpava o interior do carro.
Assim que Cristiano terminou de atender a uma senhora mordida de cachorro, acompanhou Mozalém para examinar e investigar a misteriosa caixa. Tarde demais. Já não encontraram o automóvel no local, muito menos o motorista ou quem soubesse do rumo por ele tomado. Escafedeu-se, como dizem uns e outros e para combinar com sua carga mal cheirosa. Com dificuldade, Mozalém lembrou-se do motorista, cidadão gordo com chapéu de fazendeiro e de seu companheiro, magro, alto, moreno e também de chapéu. Como se vestiam, não dava certeza.
Cristiano achou ser invencionice de Mozalém, do carro à caixa de carnes. Contudo, anotou a cor branca do Aero Willys. A placa, que seria mais útil, necas!
Para não passar por mentiroso Mozalém incumbiu-se de procurar o carro por toda cidade, “cantim por cantim”, como disse ele. Não deixava de indagar a cada um sobre os procurados. Nada!
A noite não esperou o sol se apagar direito. Mozalém apostou em ver seus procurados no ror de participantes da animada quermesse na frente da igreja de São Bento. Seus olhos oscilavam lado a lado, fazendo inteira varredura do local. Visitou e indagou a cada vendedor de churrasquinho sobre a origem da carne.
Exausto, encerrou suas atividades de investigador por aquele dia. Voltou ao lar nas proximidades da praça São Francisco. Ao virar da esquina, viu-se frente a frente com o dito Aero Willys, estacionado na calçada de sua casa. Notou também ter sido simultaneamente visto e identificado pelos ocupantes que lhe piscaram os faróis.
Bateu tremedeira, perna mole, boca seca, cabelos arrepiados até onde não se imaginava. Disparou a correr de volta ao largo da quermesse. Mas, sentiu falta de condições de se misturar ao público com suas calças borradas. Apelou para a casa paroquial onde, por sorte, conseguiu ser ouvido por padre Dulinho, que, de nariz fechado, permitiu-lhe banho e roupa limpa das destinadas a doações.
Nunca mais se teve notícia do tal Aero Willys nem de seus ocupantes, tampouco de crime bárbaro na região à época. Sempre que encontrava um ouvido disponível, Mozalém contava esse caso. Assim ocorreu comigo. E acrescentava ter reforçado as portas e janelas de sua casa, assim como fugia de qualquer Aero Willys que aparecesse na sua frente.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico, MSc. (University of Wisconsin, USA). Membro Correspondente da ALAS – Academia de Letras e Artes do Salvador/BA. [email protected]