O custo médio da internação para tratamento de ferimentos por arma de fogo é 2,6 vezes maior do que o gasto federal médio com saúde per capita
As armas de fogo não são apenas uma questão central da segurança pública brasileira, mas também um problema de saúde pública. A violência armada tem impacto direto no Sistema Único de Saúde (SUS): unidades de atendimento são fechadas, profissionais de saúde são expostos a situações de estresse intenso e comunidades ficam sem acesso a serviços essenciais. Até setembro deste ano, a cidade do Rio de Janeiro registrou quase 700 suspensões de atendimentos de unidades de saúde devido à violência. Além do impacto imaterial e humano, nos últimos 10 anos foram gastos R$556 milhões dos recursos federais com internações hospitalares para tratamento de lesões provocadas por violência armada, uma média de R$56,6 milhões por ano. Esses dados são da 3ª edição da pesquisa Custos da Violência Armada: gastos da saúde pública com atendimento de vítimas de armas de fogo, publicada pelo Instituto Sou da Paz, a partir de dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) até 2024.
Apenas em 2024, os hospitais brasileiros internaram 15,8 mil pessoas para o tratamento de ferimentos provocados por armas de fogo, o que gerou um custo de R$ 42,3 milhões para o sistema único de saúde (SUS). As internações por violência armada possuem custos cerca de 80% maiores do que o de agressão por objeto cortante e por agressão física, tipos mais frequentes ao lado da arma de fogo na prática de agressões.
Esses números, porém, podem ser maiores, como explica Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. “O cálculo da pesquisa não inclui os atendimentos ambulatoriais em unidades da saúde relacionados a ferimentos por arma de fogo que não necessitam de internação, nem as reabilitações físicas e psicológicas posteriores à alta hospitalar, pois há falta de informações desagregadas que permitam calcular esses valores”, diz. “A análise também se restringe aos gastos federais. Porque não há dados públicos que permitam mensurar o uso de recursos estaduais e municipais que integram o SUS nos casos que envolvem violência armada”, explica Carolina.
Tipos de violência
Os eventos que levam à internação por ferimentos provocados por arma de fogo podem ser de diversos tipos, a pesquisa, no entanto, revela que os eventos intencionais são os maiores responsáveis pela hospitalização: agressão por terceiros, representando 77,3% das causas de hospitalização, e lesão autoprovocada com arma de fogo, sendo 3,5% dos casos, somam 80,8% das internações. Na contramão da redução do número total de internações por arma de fogo, o número de internações por lesão autoprovocada mais do que dobrou entre 2022 e 2024, as internações passaram de 1,5% para 3,5%. Os acidentes representam 14,6% e as causas indeterminadas, 4,7%.
Mesmo que as mortes e internações por violência armada sigam em queda no país, houve uma redução de 3% das hospitalizações entre 2023 e 2024, a letalidade por violência armada segue alarmante: para cada internação, são registrados dois óbitos por arma de fogo no país. Esse cenário mostra a gravidade da violência armada, já que grande parte das pessoas feridas não sobrevive para chegar ao atendimento médico.
Perfil dos pacientes internados: gênero, raça e juventude
O perfil das pessoas que ficam internadas pela violência armada é muito parecido com aquele das pessoas mortas por arma de fogo, reiterando que o alvo da violência tem gênero, raça e idade no país. Isso porque a pesquisa revela que 89% dos pacientes internados são homens e 82% são pessoas negras. Além disso, são os adolescentes e jovens, entre 15 e 29 anos, os que mais são hospitalizados, eles representam 52% dos internados, em seguida estão os adultos entre 30 e 39 anos, eles são 23% dos casos.
A desigualdade racial não está apenas na vitimização das pessoas por arma de fogo, mas também na forma como as lesões ocorrem. Proporcionalmente, pessoas negras são mais atingidas por agressões, causa de 79% das internações entre as vítimas negras, enquanto entre as não negras, são 69%. Já as pessoas não negras sofrem mais com os acidentes, 17%, e as lesões autoprovocadas, 6%, em comparação com as negras, para quem essas causas representam 14% e 3%, respectivamente.
Há também uma diferença de gênero nos motivos pelos quais as pessoas foram internadas, os homens são mais expostos a agressões, que respondem por 78% das causas para este grupo, enquanto para elas representam 70%.
“A agressão com arma de fogo é a principal causa dos ferimentos que levaram à internação. Em grande maioria, os pacientes internados são homens negros, jovens e adultos, vítimas de agressão com arma de fogo”, diz Carolina. “O país precisa de políticas públicas para redução dessas violências e internações, que implicam o controle responsável do acesso a armas de fogo, o aumento da capacidade de investigação dos crimes e punição dos agressores, além de medidas de prevenção focalizadas nos grupos mais atingidos”.
Os estados e regiões
O Nordeste não acompanhou a redução observada nas outras regiões e hoje concentra o maior número e a maior taxa de internações, ele também possui o maior montante dos gastos com as internações hospitalares. A região responde por 42% das internações em 2024, ultrapassando em quantidade os registros do Sudeste, que representam 33%.
A pesquisa mostra que quando são analisadas as taxas de internações, Norte e Nordeste registram as mais altas taxas, mais de duas vezes superiores às observadas nas outras regiões, demandando um olhar mais atento das gestões locais a esse tema. Porém, existe uma diferença entre as regiões, o Nordeste é a única região que teve crescimento da taxa entre 2022 e 2024, já o Norte reduziu 37% das internações neste mesmo período.
Taxa de internações por arma de fogo. Brasil e regiões, 2015-2024 (por 100 mil hab.)
A pesquisa também traz um retrato dos estados brasileiros, Ceará, Amapá e Piauí se destacam com a maior demanda por internações. Alguns estados apresentam taxas de óbitos muito superiores às de internações, como é o caso do Maranhão, Pernambuco, Mato Grosso, Amazonas e Goiás. Nesses estados as diferenças são de quatro a cinco vezes mais óbitos do que internações, o que pode refletir a maior gravidade da violência armada local e da mortalidade decorrente da falta de assistência hospitalar imediata, com impacto ainda nos estados limítrofes que podem absorver parte dessas internações.
“Em 25 das 27 unidades da federação, a taxa de óbitos por arma de fogo é maior do que a taxa de internação, o que indica o quão alta é violência armada no país e o tamanho da lacuna da disponibilidade de recursos no sistema de saúde, em alguns estados essa diferença entre hospitalização e morte é 4 a 5 vezes maior”, diz Carolina. “Porém, o impacto na saúde vai muito além dos gastos com internações: nas comunidades violentadas pelas disputas entre grupos armados, a violência armada afeta o acesso às unidades de saúde que podem ter que fechar em situações de insegurança, a saúde mental dos profissionais impacta na sua rotatividade e o consumo desses recursos reduz ainda mais a capacidade de atendimento à população”.
Dimensionando os custos
O custo médio de uma internação para tratamento de lesão por arma de fogo foi de R$ 2.680,00 em 2024. Esse valor foi 159% maior do que o gasto federal com saúde per capita no mesmo ano, que foi de R$ 1.033,57. Os gastos direcionados ao tratamento das vítimas consomem recursos que poderiam ser investidos em outros procedimentos. Com o valor gastos em 2024, poderiam ser realizados, por exemplo:
– 42,3 milhões de testes de HIV
– 10,3 milhões de hemogramas completos
– 4,5 milhões de radiografias de tórax
– 74 mil sessões de quimioterapia para tratamento do câncer de mama
– 39,8 mil sessões de quimioterapia para tratamento do câncer de próstata
– 77,5 mil partos cesáreos
– 1,7 milhão ultrassonografias obstétricas
Recomendações
A pesquisa evidencia que a violência armada, profundamente associada às desigualdades estruturais da sociedade brasileira, deve ser compreendida como um grave problema de saúde pública. Nesse cenário, torna-se imprescindível fortalecer os mecanismos de controle de armas, tanto legais quanto ilegais, por meio do enfrentamento efetivo ao tráfico e da manutenção de normas de acesso responsáveis. Além disso, é necessário ampliar a produção de informações qualificadas que permitam um diagnóstico mais preciso da situação, abrangendo desde a atenção primária até o atendimento ambulatorial, além de expandir a proteção e o cuidado aos profissionais que atuam em áreas críticas.
“As áreas da saúde e da segurança precisam atuar de modo articulado na promoção de políticas públicas de prevenção e enfrentamento à violência armada. Sem isso, o país seguirá pagando uma conta alta, recorrente e socialmente injusta”, diz Carolina Ricardo. Fonte: Assessoria de Comunicação do Instituto Sou da Paz / Wigde Arcangelo.


