Estudos foram realizados pela Fundação Oncocentro de São Paulo com apoio da FAPESP
O projeto Controle do Câncer no Estado de São Paulo propõe um modelo de “rastreamento organizado”, em que todas as mulheres elegíveis são identificadas, convidadas e individualmente acompanhadas em todas as etapas (imagem: José Cruz/Agência Brasil)
Fernanda Bassette | Agência FAPESP – Apesar de o Brasil oferecer gratuitamente exames para rastrear o câncer de colo do útero e o de mama, muitas mulheres ainda enfrentam obstáculos que vão muito além da disponibilidade do serviço. Medo do diagnóstico, dor ao realizar o exame, vergonha, demora para agendar ou receber resultados e até fatores como cor da pele, escolaridade e condição de emprego seguem dificultando a adesão ao rastreamento. No Brasil, o câncer do colo do útero é o 3º mais comum entre mulheres e a 4ª principal causa de morte por câncer. Já o de mama é o primeiro tipo mais comum, excluindo-se o câncer de pele não melanoma.
Dois estudos financiados pela FAPESP (processos 22/09419-3 e 22/15539-1), realizados pela Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp), chamam a atenção para essas barreiras e revelam que elas estão diretamente ligadas às desigualdades sociais. As pesquisas foram realizadas com mulheres atendidas em 50 unidades básicas de saúde de 37 municípios do Estado de São Paulo e concluem que os programas de rastreamento, embora tenham avançado em cobertura, ainda falham em chegar a todas as mulheres, especialmente às mais vulneráveis.
“Hoje o Brasil realiza o rastreamento oportunista. Ou seja, as mulheres realizam os exames quando têm oportunidade, geralmente porque procuram a unidade de saúde por algum outro motivo. O problema é que esse modelo atinge apenas quem já está no sistema e deixa de fora justamente aquelas que mais precisam”, explica Carolina Terra de Moraes Luizaga, pós-doutoranda na Fosp e na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP).
O medo do resultado
No caso do Papanicolau, exame fundamental para prevenir o câncer de colo do útero, a pesquisa entrevistou 384 mulheres de 25 a 64 anos – faixa etária elegível para o rastreio. Apesar de 87% afirmarem ter feito o exame nos últimos cinco anos, quase metade apontou barreiras que comprometem a continuidade do rastreamento.
Entre as entrevistadas, 41% relataram que uma das barreiras para fazer o exame é o medo do resultado ruim. Além disso, 30% disseram que um obstáculo para o rastreamento é a longa espera para conseguir realizar o exame, 30% relataram demora na entrega do laudo com o resultado e 29% disseram ter vergonha de fazer o exame. Entre mulheres com menor escolaridade e renda, essas dificuldades apareceram de forma ainda mais intensa.
“As revisões de literatura apontam que o medo de descobrir algo errado é uma das principais barreiras na realização de exames de rastreamento. Ainda assim, nos chamou a atenção essa quantidade de mulheres que relataram medo do resultado. Isso porque essa barreira não influencia apenas na realização do primeiro exame, mas pode comprometer as repetições, que são essenciais para a eficácia do programa. O atraso no resultado também gera ansiedade e desconfiança no sistema de saúde”, diz Luizaga.
Dor e desigualdade na mamografia
No caso do câncer de mama, o estudo ouviu 170 mulheres de 50 a 69 anos, também frequentadoras das mesmas unidades básicas de saúde. O levantamento mostrou que 84% fizeram mamografia nos últimos cinco anos, mas elas também relataram barreiras importantes que atrapalham na adesão. A dor durante o exame apareceu como a principal barreira e foi citada por 59% das entrevistadas, seguida da longa espera para realizar a mamografia (44%), da dificuldade para agendar (40%) e do medo do diagnóstico (32%).
“A dor aparece como o principal obstáculo. Isso indica que experiências negativas prévias têm um impacto duradouro, influenciando se a mulher vai repetir ou evitar o exame. Portanto, o que mais me chamou atenção foi a dor como barreira mais citada”, afirma Alice Barros Câmara, pesquisadora da Fosp e autora desta pesquisa. “Muitas vezes, os estudos enfatizam custos, distância, falta de informação ou medo do resultado. Mas a experiência física da dor, sendo a mais relatada, sugere que não basta só estruturar o sistema, é necessário melhorar a experiência da usuária”, continua.
As dificuldades para agendar o exame também mostram que a burocracia ou a logística do sistema (horários, disponibilidade, proximidade de unidades que oferecem mamografia) são barreiras reais, mesmo em um sistema público que teoricamente oferece esse serviço.
Os dados também revelaram como fatores sociodemográficos influenciam na percepção de barreiras. Mulheres negras e pardas relataram mais constrangimento, dificuldades para marcar o exame e longas esperas. Já as brancas citaram mais medo e dor. Baixa escolaridade e renda também foram associadas a alguns obstáculos para o rastreamento. Mulheres empregadas relataram problemas específicos, como esquecimento, falta de tempo e conflitos com o horário de trabalho.
“Esses achados reforçam como desigualdades raciais, sociais e econômicas ainda moldam o acesso à saúde no Brasil. Mulheres em empregos informais ou sem flexibilidade, por exemplo, encontram muito mais dificuldade para fazer o exame, refletindo no modo como diferentes grupos acessam o sistema de saúde”, destaca Câmara.
Rastreamento oportunista
O Brasil ainda trabalha com um modelo de rastreamento oportunista, tanto no câncer do colo do útero quanto no de mama. Nesse formato, a iniciativa parte da mulher ou do profissional que a atende na unidade básica, sem que exista um mapeamento ativo da população elegível.
A ideia do projeto Controle do Câncer no Estado de São Paulo (ConeCta-SP) é propor um modelo de rastreamento organizado, ou seja, aquele em que todas as mulheres elegíveis são identificadas, convidadas e individualmente acompanhadas em todas as etapas, desde a realização do exame até o tratamento oncológico, quando necessário.
“Em países com programas mais estruturados e organizados, as mulheres são sistematicamente convidadas pelo sistema de saúde a realizar os exames na idade recomendada. Aqui, não temos isso. Se a mulher não frequenta a UBS, muitas vezes não é alcançada. É justamente esse público que pode chegar com a doença em estágio mais avançado, com menor possibilidade de cura”, observa Luizaga.
O grupo iniciou um piloto em Mococa, no interior do Estado, para validar um sistema informatizado capaz de mapear as mulheres em idade de rastreamento e consolidar, em uma única interface, dados provenientes do Sistema Único de Saúde (SUS) sobre exames realizados e seus respectivos resultados. A ferramenta foi desenvolvida para apoiar os profissionais da atenção primária no acompanhamento contínuo das usuárias, facilitando o encaminhamento adequado dentro da rede de saúde.
Segundo Luizaga, embora as taxas de cobertura do rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil estejam próximas às recomendações da Organização Mundial da Saúde, os indicadores não traduzem a realidade.
“Os inquéritos nacionais e os dados do SUS apontam uma cobertura relativamente satisfatória, mas há grande desigualdade entre regiões. Em São Paulo, por exemplo, após quase duas décadas de queda, a mortalidade voltou a crescer, sobretudo entre mulheres jovens de 25 a 39 anos. No total, cerca de 45% dos diagnósticos ainda acontecem em estágios avançados, quando as chances de cura são menores. Muitas mulheres com exames alterados se perdem no sistema e não sabemos se chegaram ao tratamento necessário. E ainda existem aquelas que nem sequer conseguimos alcançar porque não realizam o rastreamento”, explica.
Para as pesquisadoras, enfrentar essas barreiras exige ações em múltiplas frentes. Do lado do sistema de saúde, é preciso reduzir filas, simplificar o agendamento, agilizar a entrega de resultados e ampliar a oferta de horários e locais de atendimento, incluindo unidades móveis que cheguem a regiões mais distantes. Também é necessário investir na qualidade da experiência da paciente: minimizar a dor da mamografia, oferecer acolhimento durante o Papanicolau e fortalecer ações educativas para reduzir medo e vergonha.
“A abordagem centrada na paciente é essencial. Não basta dizer que o exame é importante. É preciso ouvir essas mulheres, entender suas dificuldades e adaptar as estratégias de acordo com suas realidades”, afirma Luizaga.
Câmara acrescenta que políticas específicas voltadas para grupos mais vulneráveis são fundamentais. “Não adianta tratar todas as mulheres como iguais. Escolaridade, renda, raça e condição de trabalho influenciam diretamente a adesão ao rastreamento. Sem considerar isso, seguiremos reproduzindo desigualdades”, alerta.
O artigo Barriers and attitudes toward cervical cancer screening among eligible women pode ser lido em: link.springer.com/article/10.1007/s10552-025-02058-4.
O artigo The influence of sociodemographic factors on barriers to breast cancer screening: A cross-sectional study pode ser lido em: pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/40435845/.


