Loreto em noite mal dormida

377

Loreto, ímpar pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Alagoas – EPEAL, fazia-se incansável dublê de pesquisador e extensionista. Invejavelmente ligado aos pequenos produtores rurais, principalmente os de natureza familiar. Nos encontros sociais, sempre brindava-nos com alguma arrepiante história. Eis aqui mais uma.
A serviço, foi visitar a roça de fumo de Laurinda, pelas bandas de São Sebastião, na região de Arapiraca/AL. Plantas tombadas, folhas murchas, manchas de amarelão e outras mazelas. Claro descaso nos tratos culturais, resultante do pouco conhecimento de manejo agrícola.
Laurinda mostrava-se avoada e perturbada. Quem sabe, por conta do misterioso sumiço de seu esposo Gabão, fazia quatro meses. Ninguém dava notícia do homem. Uns diziam ter fugido, enrabichado por uma rapariga da casa da luz vermelha. Outros, que fora apagado por marido traído de alguma mulher que ele abiscoitara em suas aventuras amorosas. Boa bisca, ele não era! Laurinda, por conta disso, vivia em insuportável irritação, crescente a cada dia.
Sem marido, garantia com a venda de laranja e banana na feira, a carne de sol, o feijão, a rapadura e coisas que lhe permitiam tocar a vida com seus filhos, um de cinco, outro de três anos.
Loreto percorreu a lavoura de fumo. Ainda que certo de seu diagnóstico, coletou folhas do tabaco plantado e amostras de solo para exame. Sacou um bloco de anotações e receitou, por escrito, algumas providências de adubação verde, controle de rega e limpeza de ervas daninhas. De nada adiantou. Laurinda era analfabeta.
Não desistiu. Sentou-se à mesa e, enquanto bebia café, aproveitava os raros lampejos de atenção de Laurinda para passar-lhe explicações e recomendações sobre como salvar o que sobrara da roça de fumo.
Foi nesse meio tempo que desabou tremendo aguaceiro, impedindo Loreto de retomar o caminho de volta a Arapiraca. Já era noite e a estrada estava repleta de lamaçais, ladeiras e voçorocas.
Laurinda ofereceu-lhe cama forrada com lençol e coberta na casa das folhas. Uma edificação, com banheiro, quase ligada à residência. Servia de apoio ao pátio de secagem de folhas. Escada interna de madeira, mal conservada, dava acesso, por um alçapão, ao sótão, onde se guardavam embalagens, ferramentas e tralhas em desuso, segundo Laurinda. Uma lâmpada de baixa luminosidade amarelada, pendurada por fio trançado no centro do teto acendia-se e apagava-se com o enroscar e o desenroscar do bocal.
Antes de se recolher, Loreto ainda compartilhou cuscuz de milho, banana da terra cozida e café com as crianças e a anfitriã.
A chuva continuava pesada com brava ventania de açoite. O sono custava-lhe a chegar perturbado pelo ritmado barulho de goteira no forro. Lá pelas tantas, a chuva cessara e sua goteira, mas, dera lugar a estranhos barulhos. Ora pisadas como se fossem passos humanos, ora gritos e gemidos abafados. O ranger de metais velhos eram acompanhados de algo como chicotadas seguidas de resmungo de agonia e choro de adulto em soluço.
Na escuridão, Loreto acordado, imóvel e encolhido sob a coberta que lhe cobria dos pés à cabeça. Um repentino pé-de-vento de poucos segundos estremeceu o quarto, fez o telhado assobiar alto e, aparentemente, levou consigo aqueles terríveis ruídos. Restabeleceu-se o silêncio, ufa! Loreto levantou-se e enroscou a lâmpada. Notou a cama molhada de suor. Foi ao banheiro esvaziar a bexiga. Deitou-se sobre a coberta para amenizar o úmido desconforto do lençol. Não lhe houve coragem de apagar a luz. Deitado, mirava a lâmpada pingente no teto. Sem motivo aparente, mexia-se em movimento pendular, produzindo estranhas sombras a se mexerem nas paredes. Passadas aquelas sensações, bateu-lhe um sono incontrolável. Nem ligou quando a lâmpada se apagou sem qualquer comando.
Dormiu, quase desmaiado, em paz até o amanhecer. Já de pé e recomposto, percebeu movimento na casa principal. Servido de café e macaxeira cozida fumegante, comentou sobre sua noite de pavor. Laurinda explicou-lhe que naquele sótão aninhavam-se morcegos e ratos. Não raro, ela mesma ouvia estranhos barulhos vindos de lá. Atribuía às caçadas noturnas empreendidas por seus gatos.
Loreto despediu-se sem engolir bem aquelas justificativas. Também, não achava normal os aperreios, tampouco a constante agonia de Laurinda.
Em Arapiraca, procurou o delegado de polícia que também tinha sob sua jurisdição a região de São Sebastião. Ficou sabendo que nenhum progresso fora feito sobre sumiço de Gabão. O caso continuava aberto e sem novidades, pronto a ser arquivado.
Sugeriu e conseguiu visita do delegado à propriedade de Gabão. Superando a resistência de Laurinda, acessaram o sótão da casa das folhas. Ambiente imundo, fétido com carniça de morcegos e ratos esparramada e misturada ao mofo. Pó e teias de aranha enojavam o deslocamento. Um baú no canto parecia o objeto mais recentemente ali colocado. Resolveram abri-lo. Lá estava uma ossada humana e a maior fonte do mal cheiro reinante. Fecharam-no, desceram e dirigiram-se a Laurinda, a essa altura, pálida, lábios roxos e em prantos.
O delegado dirigiu-lhe uma só pergunta para obter as respostas que desejava:
– Por que não deu a Gabão o enterro merecido?
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opçã[email protected]