Loreto e Padre Stefano

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Por Robério Sulz*

Coincidência encontrar Loreto no Shopping Jequitibá de Itabuna. Depois de anos, só o reconheci pelas fotos recentes do Face book, cabelos grisalhos, mais ralos e barba aparada curtinha a cobrir-lhe o rosto sempre irradiante de simpatia. Sentava-se nas margens da praça de alimentação com olhares indiscretos para as jovens grapiúnas que por lá desfilavam. Aproximei-me por trás aproveitando sua distração. Conferi para não errar a pessoa, apoiei a mão em seu ombro, exclamando: Loreto! Levantou-se e, em forte abraço, deixamos transbordar nossa surpreendente alegria.

  • Que fazes aqui, saudoso amigo? Indaguei.
  • Passo férias pela região; viemos a Itabuna cumprimentar parentes. Aqui, enquanto aguardo meu povo para almoço, mato o tempo ao ver a “banda” passar! – Ele mesmo colocou as aspas.

  • Espero que tenha mantido sua verve de colecionador de casos populares; fico feliz com a oportunidade de ouvir alguns inéditos, se possível.

  • Vou começar com um recente ocorrido em “xmxpt…” (falou o nome, mas pediu segredo) no interior de Alagoas. Pequeno povoado, cem por cento católico, com sua gente pastoreada integralmente por mais de uma década pelo Padre Stefano. Rigoroso, o pároco tirava da fila de comunhão quem ficasse mais de dois meses sem lhe confessar os pecados. Mas não enjeitava oportunidade para compartilhar momentos gastronômicos com os que apreciassem boa comida e tivessem pelo menos iniciação na cozinha. Italiano da Calábria, alto, avermelhado, de físico atlético e “boa pinta”, curtia a beira de um fogão (de lenha, de preferência). Tornou-se comum vê-lo envolvido em almoço dominical na casa alheia. Fazia sua própria massa com farinha importada e queijos especiais além de cultivar ervas de temperos no quintal da casa paroquial. Gostava de experimentar e inovar nos molhos.

Dado dia, o lugarejo comoveu-se com a notícia da doença de Guido, cinco anos de idade, segundo filho de Narcisa, uma das fiéis cuidadoras da igreja. Foi diagnosticado com leucemia, em Maceió, para onde fora levado por seu pai, Zé-maria, e submetido a exames. Zé-maria sustentava a família com fretes em seu próprio caminhão, geralmente entre cidades grandes, quase nunca usado por alguém do lugar.

Considerando a gravidade e a complexidade da doença, além dos poucos recursos disponíveis na capital alagoana, recomendaram o tratamento de Guido em São Paulo ou Curitiba, com unidades hospitalares especializadas para esse tipo de atendimento. Como operar esse deslocamento passou a ser o problema. Transportá-lo em caminhão não soou adequado para Zé-maria. Quem resolveu a questão foi Padre Stefano. Louvando-se na sua liderança pastoral, mobilizou a pobre comunidade local para doações, rapou as magras reservas dos dízimos e ainda conseguiu ajuda do prefeito municipal. Nem precisou usar o bilhete de passagem de ida e volta a São Paulo que ganhara de uma grande empresa aérea. Deixara-o em aberto.

Padre Stefano ainda conseguiu hospedagem e alimentação para Narcisa junto às freiras da ordem Medalha Milagrosa.

Com acolhimento médico já acertado pelo corpo clínico de Maceió, lá se foram Narcisa e seu filho Guido para o Hospital do Câncer em São Paulo. Nem enfrentaram dificuldades no traslado do aeroporto para o hospital, prestado por veículo público da capital paulista.

Concluídos os exames preliminares e consolidada a internação, procedimentos refinados levaram a admitir o transplante de medula como único tratamento de razoável esperança para o caso. Guido foi incluído na fila de aguardo de doador compatível ou na busca de genética compatível entre parentes próximos. Zé-maria, o pai, foi de imediato lembrado para os testes genéticos. Pleiteou usar o bilhete de passagem guardado pelo padre.

Foi aí que apareceu um nó cego na história. Sem ninguém entender, Padre Stefano punha dificuldade, sonegava a cessão da passagem e se enrolava nas justificativas. Estranhava-se inclusive sua oposição à viagem de Zé-maria, ainda que no caminhão de frete. Alegava estradas em péssimas condições, insegurança, desconhecimento do trânsito paulista e outras mais.

Porém, contrariando as recomendações, Zé-maria conseguiu ajuda para o combustível e partiu em seu caminhão rumo a São Paulo. Viagem penosa com duração maior que três dias.

Só Padre Stefano sabia da possível incompatibilidade genética de Zé-maria com Guido, embora médicos afirmassem categoricamente o contrário; indicavam o pai como o mais provável dos parentes compatíveis. Explica-se. Padre Stefano guardava segredo sobre quem era o pai biológico de Guido. Mas, por razões, pessoais, canônicas e sociais sentia-se impedido de revelar. Contudo, não perdia de vista a gravidade da saúde do menino. Julgava-se detentor da solução para evitar sua morte. Passou a viver dias de dramática tormenta mental. Diariamente prostrava-se ante o altar, confessava e rogava a Deus por orientação, inclusive sobre o pecado de revelar aquele segredo.

Não se aguentou, confessou a Deus sobre sua fraqueza. Usou, ele próprio, a passagem aérea. Em São Paulo, ofereceu-se como doador da medula. Na mesma oportunidade, Zé-maria também por lá chegava. Fizeram ambos os mesmos testes. Não sem antes Padre Stefano revelar seu segredo ao médico responsável pelo transplante. Alegando dificuldade para permanecer em São Paulo, ambos pediram para, incontinentemente, já fazerem a punção de suas medulas e usar a que fosse compatível. Os resultados oficiais apontaram pela incompatibilidade do Padre Stefano e pela perfeita compatibilidade genética de Zé-maria.

O transplante ocorreu com sucesso e Guido escapou da doença, voltando de caminhão, inclusive junto com Narcisa para Alagoas.

Padre Stefano continuou respirando felicidade, respeitado na comunidade e admirado por sua generosa – embora oficialmente infrutífera – disponibilidade de doar sua medula óssea em favor de Guido.

*Roberio Sulz é biólogo, biomédico e professor com licenciatura plena em Ciências biológicas (UnB), MSc. (University of Wisconsin, USA). Membro Correspondente da ALAS –  Academia de Letras e Artes do Salvador/BA.  [email protected]