Loreto e o amigo Poli

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Por Roberio Sulz*

Fim de tarde em Maceió, à beira mar, nas imediações do Gogó da Ema. Curtia, na companhia de Loreto – aquele colega pesquisador alagoano – brisa soprada do nordeste.  Como sempre, Loreto não deixou de contar:

Em Arapiraca/AL, onde nasci e me criei, fiz uma inesquecível amizade.  Era ainda menino, algo em torno dos sete anos de idade, quando me lembro de estar sempre acompanhado de meu amigo Poli, um ano e pouco mais velho. Polifrânio era seu nome de batismo e de cartório. Nome que deu trabalho para ser pronunciado, durante seu batismo, pelo Padre Tadeu, gago e ainda mais gago quando surpreendido com algo desconhecido. Poli era vítima dessas mal sucedidas tentativas de combinar dois nomes. Na família, só era chamado de Poli. Mesmo, por sua mãe Poliana e seu pai Afrânio.

Juntos, brincávamos de muita coisa. O mais comum era o jogo de futebol de botão, pelo menos umas três vezes por semana. Não faltava campeonato.  Cortando e lixando duras cascas de coco, sementes de “olho-de-boi” e outros materiais da natureza fazíamos nossos “atletas”. Os zagueiros eram tampas de tinteiro polidas nas arestas. Altos, um de cada lado, serviam de guardiães e auxiliares do goleiro. Este, sempre uma caixa de fósforo recheada de areia.

Também fazíamos máscaras usando papelão, papel crepom, fibras de coco seco, algodão, gravetos, cal, barro colorido, dendê urucum e sobras de cal de parede. Na escola, ele um ano na minha frente, não dividíamos a mesma sala de aula. Poli uma vez disse que ia se fazer reprovado de propósito só para passarmos a participar da mesma sala e ter a mesma professora. Porém, desistiu da ideia.

Crescemos juntos curtindo uma divertida amizade. Ríamos muito um da besteira que o outro falava ou fazia. Já nos aproximávamos aos sorrisos. Do nada, bastava uma troca de olhares. Senti muito sua falta quando vim estudar o curso científico em Maceió. Matávamos a saudade nas idas de fim de semana prolongado a Arapiraca e também nas visitas de Poli a Maceió. A qualquer tempo, a alegria de estarmos juntos era festejada e comemorada como felicidade.

Diferentemente de mim, Poli, mal completara a maioridade, empregou-se numa indústria de fumo, adotando o mesmo caminho laboral de seu pai Afrânio.  Era o jeito de contribuir no sustento da família, composta de mais cinco irmãos. Não passou do curso ginasial. Isso em nada abalou nossa fraterna amizade.

Ao aproximar a conclusão de meu curso de agronomia, só pensava compartilhar alegria em festiva comemoração com o grande amigo Poli.

Três meses antes da formatura recebi a triste notícia da morte de Poli. Fui a seu velório. Pela primeira vez olhei seu rosto e não pude sorrir. Não me dei por convencido, olhava-o insistentemente, aguardando que dele viesse aquele alegre repuxar de bochechas. Acompanhei-o no enterro, não a título de despedida, mas com a esperança de que, antes de chegar ao túmulo, ele ressurgisse sentado, dizendo: tudo isso é uma brincadeira.

Na solenidade de formatura, estavam lá meu pai, minha mãe, dois de meus irmãos, minha namorada Jane, mais tio Dezinho e sua esposa Cenira que moravam na capital. Sentado na primeira fileira do auditório, não me cansava de olhar para trás e imaginar que ali também estava ou poderia estar Poli.

Após discursos e falas protocolares, procedeu-se à chamada nominal dos formandos para receber seus respectivos diplomas, enrolados e embutidos dentro de num estojo cilíndrico marrom, com tampa de pressão. Na minha vez, ainda olhando e procurando meu amigo, cheguei a tropeçar nos degraus da escada de acesso à mesa das autoridades. Os aplausos fizeram-me bem porque admiti ter ouvido no meio deles, as palmas de Poli.

Encerrada a solenidade, cada formando retirava do canudo seu diploma e, desenrolando-o, fazia-se fotografado junto a sua família e convidados. Ensaiei repetir o mesmo gesto, mas, não alcancei meu diploma ao tentar insistentemente sacá-lo do cilindro. Canudo vazio?! Aproveitei a presença do diretor da faculdade e do reitor para registrar minha surpresa e inconformidade com o canudo sem diploma. Justificaram o fato como um possível lapso que seria corrigido, sem dúvida, na segunda feira seguinte nos meandros burocráticos da instituição. Conformei-me com a justificativa e o reparo prometido.

Dali, saímos para um jantar dançante oferecido pelos magnatas do fumo aos formandos e convidados, num majestoso clube social. Música, comidas, bebidas e decoração ambiental, tudo de boa irreparável qualidade. Divertimo-nos entre danças, elogios à música e outras prosas que o ambiente ensejava.

Voltei a meu quarto de pensão exausto e sonolento. Adormeci sem muita delonga. Despertei-me antes da cinco, com o clarão do sol e a sensação agradável do sonho que tivera. Nele, Poli aparecera-me, cumprimentara-me com um forte abraço. Vi-o, também, mirar orgulhosamente meu diploma, enrolá-lo e colocá-lo cuidadosamente no estojo. Ao levantar-me, tomei o canudo na mão, abri-o e, sem dificuldade, de lá retirei meu diploma. Não pude deixar de me relaxar com um largo sorriso.

Só podia ser você, Poli, o autor dessa arte!

*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Pensador por opção. [email protected]