Livino, o tinteiro

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Dos três filhos de Tuca e Mário, Livino era o do meio. Nascidos em Helvécia, Bahia, descendentes do pessoal de Braulino da Volta Miúda, essa família era dos raros representantes do tipo pigmeu na região. Nenhum deles passava do metro e meio. Reluziam ao sol toda sua negritude.

Afilhado de Pomba, Livino chegou a morar com sua madrinha no Rio de Janeiro, dos quinze aos vinte anos. Por lá, praticou o ofício de caixeiro balconista numa venda de secos e molhados, depois de ter penado carregando compras na feira-livre, no Meyer. Alfabetizou-se e chegou a frequentar curso noturno de educação básica. Na escola da vida, aprendeu mais que na sala de aula. Lia, com prazer, jornais, fotonovelas e publicações de pequeno porte vendidas em bancas de jornal. O fato é que, diferentemente da maioria, gostava de ler. Não perdia a oportunidade de reafirmar sua grande vontade de fazer um curso de datilografia e trabalhar em escritório, vestindo paletó e gravata.

Curioso e esperto, apropriava com gosto e facilidade informações resultantes de leituras e conversas. Bastante interessado por costumes sociais, apegou-se ao inarredável hábito baiano – quase religioso –de usar roupa branca às sextas-feiras. Baixinho, gordinho, afro-reluzente, metido numa roupa branca, em pleno Rio de Janeiro. O carioca gozador não perdeu tempo em lhe aplicar o apelido de “Tinteiro”.  De início, não se aborreceu, tomando-o como carinhosa brincadeira. Chegava até a conferir no espelho a adequação do apelido.

Com o tempo, o que era inocente brincadeira virou amolação. Livino passou a evitar muita exposição nas ruas e a não corresponder com simpatia os que insistiam no apelido. Começou aí sua vontade de voltar para a Bahia. Melancolicamente, lembrava-se e sentia muita saudade dos pais, dos irmãos e de companheiros de banho no Canal e no Rio Peruípe.

O que fazer por lá? – perguntava-se. Passou a dedicar-se a um assunto que muito lhe interessava: a agricultura. Agora, justificado pela perspectiva de tocar uma propriedade mais próxima a Helvécia e ficar reconhecido como um produtor rural moderno, diferente da comunidade local. Sonhava com uma propriedade mais produtiva e diversificada que a roça dos pais e avós em Volta Miúda.

Passou a ler compulsivamente sobre técnicas e épocas de plantio, combate a pragas, irrigação etc. Colecionava almanaques e suplementos de jornais e revistas que dissessem sobre o assunto. O “Almanaque Fontoura” era o de sua preferência, embora não dispensasse o “Almanaque Capivarol”.

Sabendo de seu interesse, seu Olavo, dono da banca de revistas, lhe presenteava ocasionalmente com exemplares encalhados do “Almanaque Agrícola e Veterinário”, das indústrias Bayer e publicações da Biblioteca Agrícola Popular Brasileira.

Juntou umas economias e decidiu regressar às origens, certo de que, com novos conhecimentos e um dinheirinho no lenço, poderia realizar o seu sonho de moderno produtor rural.

Não custou a se engraçar e se amasiar com Noca, filha de seu Euzébio. Trabalhava duro de segunda a quinta-feira. Às sextas-feiras rodava o ambiente urbano, com seu jegue, a vender, de porta em porta, aipim, abóbora, banana da terra, abacaxi, mamão, quiabo, maxixe, tomatinho e outras frutas e verduras. Contudo, não relaxava no vestuário. Ainda que, com os pés no chão ou de tamancos, na vila, não relaxava nos trajes. Calça e camisa brancas, impecavelmente alvejadas e cuidadas por Noca.

Progrediu. Noca lhe dera um filho, batizado por João Rafael, apreciado como prêmio divino.

Naquela época chegou a Helvécia uma equipe de trabalho do Ministério da Viação e Obras Públicas, chefiada pelo Dr. Lacerda, com o objetivo de estudar uma variante que reduzisse a inclinação da ladeira do Peruípe para Estrada de Ferro Bahia e Minas.

Não faltou, nessa  equipe, um carioca gaiato, que sem saber de qualquer história de Livino no Rio, resgatou-lhe prontamente o apelido de Tinteiro.

Tinteiro, para os alunos da Escola de Dona Emília Sulz, era aquele vidrinho de tinta de escrever, quadradinho como o rótulo bem branquinho. Nele, mergulhava-se a pena de escrever. Os eventuais excessos na escrita eram absorvidos por mata-borrões.

Livino, agora mais conhecido como Tinteiro, não se conformava com o infortúnio da gozação. De vez em quando, ameaçava a meninada com chicotes e pedradas, mas, resignava-se, atendendo às recomendações dos mais velhos. Certa feita, teve que ser contido à força, quando Peri, de brincadeira, pediu a Tinteiro para permitir que ele molhasse sua pena.

*Roberio Sulz é professor universitário; biólogo, biomédico (B.Sc.) pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. roberiosulz@uol.com.br.