Lilico

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Filho de dona Hélia e do mascate árabe Kimball, Heliakim tornou-se famoso como Lilico, o enrolado, pelas confusões em que se metia e malandragens por ele engendradas. Ainda assim, difícil achar quem não o tivesse na conta de boa gente. Talvez, porque, acima de tudo, fosse simpático, respeitador, de fina educação ao falar, prestativo e sem vícios. Nem fumava.
Para as formalidades legais, declarava ter residência fixa em Alcobaça, onde nascera em 1922. Mas, não costumava parar por muito tempo num só lugar. Andava mais que notícia ruim. Um tempo aqui outro ali, sempre hospedado por alguém. Benquisto, não lhe negavam cama, refeição e prosa.
Permanentemente endividado, vivia de biscate e pequenas enganações – 171 no atual jargão popular. Pau pra toda obra, menos as que lhe impusessem suar a camisa. Ora fazia serviços de despachante providenciando documentos junto a cartórios e repartições públicas em Caravelas/BA, Teófilo Otoni/MG, Ilhéus/BA etc., ou mesmo em Salvador/BA. Outras vezes, passando-se por íntimo de políticos e poderosos, prestava-se a intermediar pedidos de emprego, bolsa de estudo, internação em hospitais, relaxamento de prisões e coisas do gênero.
Lilico também, experimentou vender terras sem dono, fazendas fracassadas, lotes urbanos irregulares, madeira em pé no mato etc. Por um tempo foi divulgador de remédios junto a médicos e farmácias. Na região da Estrada de Ferro Bahia e Minas – Bahiminas, comprava e vendia “vales de lenha”, relativos à madeira fornecida a título de combustível para locomotivas.
Embora nunca conseguisse pagar suas contas, era bom companheiro de mesa. Poeta e seresteiro nas horas de bar. Melhor com algum incentivo etílico. Por educação e para evitar decepção, já nem mais pedia dinheiro emprestado a conhecidos.
Deslocava-se com muita frequência pelos navios (vapores) do Lloyd que faziam a navegação costeira no litoral sul da Bahia. Também era figura muito frequente nos expressos de passageiros da linha Caravelas-Teófilo Otoni/MG, sempre metido num comprido jaleco (ou guarda-pó) de brim azul marinho, que lhe servia de proteção contra fagulhas da maria-fumaça. Viajava sem pagar, contando com a complacência dos chefes de trem da Bahiminas e dos conhecidos comandantes de vapores do Lloyd.
Numa dessas viagens pelo Lloyd, retornando de Salvador, Lilico, ainda no cais, foi surpreendido com a substituição da embarcação costumeira, inclusive de toda a tripulação. Naquele navio, não conhecia um grumete sequer. Com trocados suficientes apenas para alimentação a bordo, tentou obter gratuidade na viagem, usando conversa mole e falsa alegação de ser agrônomo a serviço do Ministério da Agricultura. Debalde, o comandante, linha-dura, de poucas palavras e paciência, nem lhe deu ouvidos.
Quase resignado em ter que adiar a viagem, notou um cidadão com igual dificuldade de diálogo com o comandante. Tentava ele despachar quatro lindas cabras leiteiras de raça com destino a Caravelas, adquiridas por um criador de caprinos. O comandante negava o despacho alegando não ter marinheiro disponível para cuidar dos animais durante a longa viagem.
Foi aí que Lilico entrou na conversa. Ofereceu-se para cuidar dos animais embarcados, desde que lhe pagasse a passagem e mais algum adicional pelo serviço de bordo prestado às cabras, incluindo breves caminhadas externas, a cada ponto de parada do vapor.
Trato feito, comprada a passagem completa, incluindo leito, Lilico recebeu fardos de feno, meio saco de milho, balde e uma pá para recolher fezes.
A bordo, o comandante e o imediato não poupavam expressão de insatisfação a cada vez que deparavam com aquele esperto passageiro.
Lilico cumpria, à risca, as obrigações no trato dos animais, inclusive conduzindo-os aos exercícios externos durante as paradas do navio.
Na escala de Canavieiras, durante o passeio das cabras, surgiu um senhor, criador de caprinos, que admirava com especial atenção o porte, a cor e saúde daqueles animais. Pediu para ajudar na caminhada conduzindo duas das cabras e puxou prosa com Lilico:
– Lindas cabras você tem!
– São de uma raça leiteira inédita no Brasil. Acabei de comprá-las em Salvador e estou levando-as para Caravelas, onde tenho um bode de cobertura da mesma raça. Vou ingressar nesse ramo de vender cabritos leiteiros de raça.
– Também crio caprinos leiteiros aqui em Canavieiras. Interessei-me por suas cabras. Proponho-lhe negócio. Um conto de réis pelos quatro animais.
– Negócio fechado! Pode levar. Mais dias, buscarei outras fêmeas em Salvador para substituir estas no meu plantel.
Recebido o dinheiro, Lilico retornou a bordo sem os animais, provocando curiosidade do comandante e seu imediato. Mas, não trocaram palavras.
Em Caravelas, tentou, mas não conseguiu esquivar da pessoa que o aguardava com os animais. Indagado, justificou-se:
– Os animais morreram da doença dos quartos. Em Canavieiras, quando caminhavam, caíram deitaram e pararam de respirar. Tive que pagar uma grana para recolher e enterrar as carcaças. É nisso que dá importar do estrangeiro animal que não se dão bem aqui no Brasil, principalmente no clima da Bahia.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opção. [email protected]