Ser feliz antes que a vida acabe
Por Roberio Sulz*
Gonzaguinha estava prenhe de razão quando recomendou em sua inesquecível composição musical: “viver e não ter a vergonha de ser feliz…”. Santo Agostinho também merece ser louvado por sua máxima: “a vida continua bela como sempre foi”. Essas e outras famosas almas curtidoras da vida ensinaram, em poucas palavras, aos viventes de hoje, a valorizar o tempo vivido e o porvir. Ainda jovem, o cidadão ou cidadã antevê tanto tempo pela frente que não economiza esforços para cometer tolices e atos de risco impensado. A ofensa, segundo o raciocínio dessa turma, será sempre esquecida e o perdão divino bem como o do ofendido, se não de imediato, virá algum dia. Conta com ele, como atendimento ao popular: “pô, foi mal!”.
Talvez, por isso, a ofensa esteja tão generalizada e banalizada, tanto quanto os assassinatos, estupros, roubos e outros delitos. É a suprema confiança no “conseguir dar a volta por cima”, ou melhor, na impunidade, na “falta de troco”. Sobram-lhes, pois, impetuosidade, inconsequência e desrespeito a valores morais, às reservas culturais, enquanto lhes faltam, sobretudo, amor e apreço pela harmonia, pela paz edificada pelos primicérios, aqueles que plantaram as primícias, essas que permitiram direta ou indiretamente lhes abrir as estradas da vida. Os guichês de atendimento preferencial para idosos existem não para compensar dificuldades de locomoção ou lentidão de raciocínio, mas, para oferecer conforto, como gratidão, a quem já prestou sua cota de contribuição social. Lamentavelmente, ainda existem alguns poucos que não entendem o valor patrimonial dos mais experientes em colaborar e operar positivamente na sociedade. O velho não é material social descartável. Aprende facilmente a viver com baixos proventos da aposentadoria, a incomodar menos os que se irritam facilmente e, como diz Amir Sater, a andar mais devagar para esquecer a pressa que um dia o fez envelhecer. Faz questão de demorar a chegar aonde não quer nem saber se vai. Mas, enquanto é tempo, tem uma vontade magnânima de ajudar, de achar que o mundo pode melhorar contando com sua participação experimentada, comedida, bem dosada etc.
Há um valor que o veterano, desde a época em que os antigos eram modernos, faz questão de valorizar: o respeito. Não abre mão do respeito, mesmo! Sente-se mal com reprimendas descabidas, penalizações injustas, desconsideração de seu saber, de sua importância social, ainda que em fim de carreira.
Dói ver o cidadão que investiu no seu aprimoramento profissional e acadêmico, que na juventude sacrificou o lazer em favor do saber, submeter-se aos caprichos dominadores de administradores autoritários e arrogantes; de curvar-se, mesmo com sua coluna já pouco flexível ante a autoridade acobertada meramente pela oficialidade, não pelo mérito, muito menos pela experiência de vida, mas, por razões quase ininteligíveis baseadas em escabrosos acordos de justificação duvidosa.
É de trançar neurônios ver privilégios e poder nas mãos de quem se lambuza ao usá-los, de quem usa luvas de aço para abrir portas de cristal.
Voltemos aos mais vividos. Estes, sim, sempre acostumados a sofrer com as injustiças, com as incompreensões e as contradições, terminam acoelhando-se sob o brado do terror autoritário e, muitas vezes, acomodando sua indignação sob o manto da paz. Seu grau de compreensão supera o da indignação. Sua revolta ganha a rota da digestão.
Nas milenares culturas orientais bem organizadas, o ancião era e ainda costuma ser a referência social máxima. Sabedoria, ponderação e senso de justiça eram e ainda são atributos considerados inerentes aos anciãos. E as pessoas investem em si, desde cedo, para alcançar essa qualificação. Por essa razão, a sociedade lhes devota respeito.
Porém, por que em nossa sociedade ocidental moderna o comportamento dos mais jovens para com os veteranos tem que ser injusto, ilógico e desrespeitoso?
Por conta do poder, seria uma boa resposta. Poder que confere ao inexperiente mancebo o arbítrio e a confortável sensação de se estar acima do bem e do mal, de ter a espada de Dâmocles sob suas mãos e não sobre sua cabeça; enfim, de curtir a certeza da impunidade.
Talvez, estejamos revivendo a filosofia “existencialista” tão badalada, quanto abominada na década de sessenta, felizmente, extinta, através da qual se enaltecia a inconsequência social, não se dando valor ao futuro e tampouco se considerando o passado para se praticar bons hábitos de vida. Ou, quem sabe, tudo isso não venha a ser consequência da impune prática da “carteirada”, já que os critérios para se conferir carteira de autoridade ficaram menos rígidos?
*Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]