Helvécia – Polo da cultura afro

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Poucos, mesmo os da região do Extremo Sul Baiano, conhecem Helvécia. Alguns, lamentavelmente, nunca ouviram falar dessa interessante e diferenciada vila pertencente ao município de Nova Viçosa. Fundada em meados do século 19, por colonizadores europeus, funcionou por décadas como um centro comercial de produtos agrícolas, de onde partiam para as diversas regiões do Brasil e para o exterior produtos como café, derivados da cana-de-açúcar, de mandioca e cacau, este último em escala não competitiva com a região baiana acima do Jequitinhonha. A vila de Helvécia ganhou porte mais vistoso com o projeto de Teófilo Benedito Otoni de implantar uma linha férrea ligando o nordeste de Minas ao porto de Caravelas ou Ponta de Areia. Esse projeto previa para sua integralidade o desenvolvimento agropastoril das terras lindeiras à estrada de ferro e, assim, colocava Helvécia no epicentro do projeto desenvolvimentista regional. Isso fez do pequeno, um grande lugar, repleto de pessoas ilustres, cultas, comerciantes e até pequenas indústrias. Permeada por uma efervescente atmosfera cultural e esportiva, Helvécia chegou a ter dois times de futebol sem segregação racial, mesmo com sua diminuta população. As festas cívicas e religiosas eram incrivelmente esplendorosas quando imaginadas em seus poucos habitantes. Sua estação férrea, ainda uma portentosa edificação de dois pavimentos, era uma das mais movimentadas e admiradas por sua arquitetura. À noite, sua plataforma era ponto de encontro dos jovens nativos e visitantes. Conviviam ali negros, caucasóides, crioulos, caboclos e alguns índios, todos na santa paz, sem arrelias ou disputas. Violência, quando ocorria, era trazida por gente de fora. O tempo passou, erradicaram os trilhos da Estrada de Ferro Bahia e Minas, da Bahiminas, querida e respeitada como se fosse uma dama da nobreza sempre presente entre seus súditos. Muitos, principalmente os descendentes de colonos europeus, foram buscar continuidade de sua preparação acadêmica em outras plagas e, naquela, outrora rica, agora pobre, vila, se quedaram quase que somente os sofridos, na sua maioria os negros, já sem trem de ferro, sem estrada de rodagem, sem correios, sem telefone, enfim, sem vintém, vivendo unicamente da e para sua autossubsistência agropastoril. Condenada ao descaso pelas políticas públicas, Helvécia definhava como centro social, condenada a se acabar. É nesse clima que, como um grito d’alma, se resgata a força e o brio de seu povo, agora mais negro do que nunca, para se levantar com retidão, brilho e suor, à imagem dos trilhos férreos serenados, bater no peito e bradar: “Nós somos este lugar, nossos pais vieram para cá fugindo das inglórias escravagistas para trabalhar em parceria com nossos irmãos colonos europeus! Libertamo-nos do regime da ‘casa grande-e-senzala’. Fizemos nossa esta vila! Não precisamos, para ser livres, empreender sangrentas batalhas como os irmãos de Palmares nem nos emprenhar de ódio contra os brancos. Fomos, sim,  alijados do progresso, mas, sob o espírito quilombola, vamos fazê-la renascer ao som dos atabaques, do pandeiro e do berimbau e cantar bem alto nossas tradições afro!” Assim se reergueu Helvécia, não como palco de guerra étnica ou política, mas, tipicamente, como “quilombo sócio-racional” em resposta ao desprezo que lhe impuseram sob a mentirosa promessa de uma imediata rodovia federal pavimentada, assistência governamental etc. e tal. Quem hoje por lá aparece em busca de visitar museus com grilhões, ferros de marcar a quente, ferramentas de tortura, armas de guerra ou mesmo espírito raivoso de vingança, depara surpreendentemente com uma animada e festeira comunidade, a exibir pacíficas pessoas negras de porte esbelto, atraentes, educadas e de incrível receptividade social. Na companhia dessa agradável gente ainda se saboreia a legítima culinária negro-africana, à base de coco e dendê, deliciosos quitutes, cocadas, cuscuz, beijus e inigualáveis moquecas doces assadas na palha da bananeira. 

O visitante entusiasmado deve guardar um tempo vesperal noturno para ver e participar de muitas de suas manifestações artísticas. A tradicional capoeira e suas variações jogadas e dançadas com maestria, ao som de músicas compostas e cantadas por gente do local, com letras que recontam a história. O “bate-barriga” ou “bate-coxas”, evoluída somente entre mulheres, ao som de viola, tambores e vocal coletivo, com músicas de forte ritmo afro e paradinhas especiais para o estrondoso encontro de coxas a produzir os estalos característicos da dança.  O Samba de Viola é onde os cavalheiros dançam como perus orbitando e cortejando insistentemente as fêmeas, todos organizados num grande círculo no salão, ao som de viola, sanfona, pandeiro e tambores. As músicas, bem como suas letras, são improvisadas no ato e muitas vezes referenciadas ao sucesso ou insucesso dos dançarinos. Outra curiosa tradição dos quilombolas é o “embarreio”, evento diurno de participação agendada, vindo da época em que se embarreavam, com o envolvimento de quase toda a comunidade, as casas ou palhoças estruturadas com varas, ripas e cipós. Um largo buraco era feito no quintal e ali dentro a terra ou o barro molhados eram remexidos e pisoteados, ao som de atabaques, sanfona, viola e muita cantoria para animar a festa, sem falar nas comidas e bebidas fartamente oferecidas aos voluntários.

*Roberio Sulz é professor universitário; biólogo, biomédico (B.Sc.) pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]

 

1 COMENTÁRIO

  1. gostei muito do artigo e acredito que helvécia é isso, e muito mais. Porém quero ressaltar a falta de vergonha dos governantes locais e estaduais que não se importam com as estradas que dão acesso á essas comunidades ( helvécia, cândido marianoo,

    parabéns, textos como estes só enobrece a nossa região.

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