Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. São crimes que ocorrem geralmente na intimidade dos relacionamentos e com frequencia caracterizam-se por formas extremas de violência e barbárie. São crimes cujo impacto é silenciado, praticados sem distinção de lugar, de cultura, de raça ou de classe, além de serem a expressão perversa de um tipo de dominação masculina ainda fortemente cravada na cultura brasileira. Cometidos por homens contra as mulheres, suas motivações são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda da propriedade sobre elas.
O feminicídio representa a última etapa de um continuum de violência que leva à morte. Precedido por outros eventos, tais como abusos físicos e psicológicos, que tentam submeter as mulheres a uma lógica de dominação masculina e a um padrão cultural que subordina a mulher e que foi aprendido ao longo de gerações, trata-se, portanto, de parte de um sistema de dominação patriarcal e misógino.
Características do crime de feminicídio
Na prática do crime de feminicídio evidenciam-se como pressupostos importantes a premeditação e a intencionalidade de sua consumação.
Assim, podemos destacar algumas características próprias desse tipo de crime:
- é praticado com vistas à destruição do corpo feminino, utilizando-se de excessiva crueldade e chegando a causar a desfiguração do mesmo;
- é perpetrado com meios sexuais, ainda que sem manifestar o intento sexual;
- é cometido no contexto de relações interpessoais e íntimas ou por alguma razão pessoal por parte do agressor, podendo estar associado à violência doméstica;
- seu caráter violento evidencia a predominância de relações de gênero hierárquicas e desiguais;
- pode haver sobreposição de delitos, geradores de situações de barbárie e terror: mulheres são estupradas, mortas, queimadas, mutiladas, torturadas, asfixiadas, mordidas, baleadas, decapitadas etc.; e esses diversos crimes podem ocorrer concomitantemente, sobre um mesmo corpo;
- é um crime de apropriação do corpo feminino pelo marido-proprietário como sendo um território para uso e/ou comercialização em tudo o que esse corpo pode oferecer, isto é, desde a prostituição até mesmo o tráfico de órgãos;
- ocorre como o ápice de um processo de terror, que inclui abusos verbais, sexuais, humilhações e uma extensa gama de privações a que a mulher é submetida: mamilos arrancados, seios mutilados, genitália retalhada.
Como bem definiu o Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher (CPMI) do Congresso Nacional:
“O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante.” (BRASIL, 2013, p. 1003).
Faz-se necessário que o Código Penal brasileiro trate do crime de feminicídio, explicitamente classificado e tipificado, para pôr fim ao silêncio social e à desatenção que cerca esse tipo de crime. Faz-se necessário trazer o crime de feminicídio à luz, para que se possa erradicá-lo. A preocupação principal deve ser distingui-lo das demais tipificações dos crimes passionais, entendidos como menos graves e legitimados pelo sistema jurídico com penas mais brandas.
Dimensão do problema
Nos últimos 30 anos observa-se um crescimento no número de mulheres assassinadas no Brasil, totalizando um aumento de 230% nesse quantitativo (DPJ/CNJ, 2013, p. 11), com a morte de cerca de 92 mil mulheres, tendo sido 43,7 mil apenas na última década (Mapa da Violência, 2012, p. 8).
Entre os anos de 1980 e 2010, o índice de assassinatos de mulheres dobrou. Passaram de 2,3 para 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres. Com esse índice, o Brasil está muito mal posicionado no ranking internacional de assassinatos de mulheres, ocupando o sétimo lugar no mundo. Essa situação equivale a um estado de guerra civil permanente.
Ainda segundo o Mapa da Violência (2012), 41% das mortes femininas ocorreram na casa da vítima. Em 68,8% dos atendimentos às mulheres em situação de violência, a agressão aconteceu na residência da vítima.
O relatório sobre o peso mundial da violência armada aponta que a maioria dos assassinatos de mulheres vem sendo praticado por parceiros ou ex-parceiros íntimos, amigos ou parentes das vítimas, e que a maioria destas havia sofrido anteriormente alguma forma de violência por parte de seus assassinos (Geneva Declaration Secretariat, 2011). No Brasil, 49% dessas mortes de mulheres foram praticadas com armas de fogo, o que sugere que a posse desse tipo de arma dentro de casa representa um perigo em potencial atentando contra a vida das mulheres.
Necessidade da tipificação do crime de feminicídio
Deve-se considerar que os principais dados sobre homicídio e violência contra as mulheres disponíveis no Brasil são provenientes do Ministério da Saúde e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE. Nesse sentido, supõe-se que a dimensão desse crime é maior do que se pode mensurar a partir dos números existentes. A tipificação do crime de feminicídio preencheria essa lacuna de informações e indicadores sobre o problema e poderia contribuir para a construção de políticas de enfrentamento a essa forma extrema de violência.
O feminicídio é uma categoria ainda em construção no Brasil, tanto no campo sociológico quanto no campo jurídico, uma vez que a violência está enraizada nas estruturas sociais, assim como é parte da ‘aprendizagem’ no sistema de socialização, independentemente dos padrões socioeconômicos de pertencimento. Da CPMI da violência contra a mulher no Brasil resultaram diversas propostas de alteração legislativa, dentre elas a tipificação do feminicídio. A CPMI propõe que o feminicídio seja tipificado como um agravante ao crime de assassinato, o que resultou o Projeto de Lei do Senado de n°292, de 2013, que prevê o feminicídio nos seguintes termos:
“Homicídio
Art. 121.
(…)
Feminicídio
VI – contra mulher por razões de gênero:
………………………………………………………………………………………….
§ 7º Considera-se que há razões de gênero em quaisquer das seguintes circunstâncias:
I – violência doméstica e familiar, nos termos da legislação específica;
II – violência sexual;
III – mutilação ou desfiguração da vítima;
IV – emprego de tortura ou qualquer meio cruel ou degradante.”
Não basta tipificar
De acordo com a jurista chilena Carmen Antony, o Direito Penal desacompanhado de políticas públicas não é capaz de prevenir nenhum tipo de conduta, porém muitas são as razões para a tipificação do feminicídio. Segundo a jurista, podem ser destacadas:
1) a tipificação pretende que as sanções se qualifiquem como homicídios agravados;
2) pretende-se eliminar o termo “crime passional” que oculta um sistema de dominação patriarcal;
3) contribuirá para modificar a mentalidade patriarcal de juízas e juízes, uma vez que estas/es têm que fundamentar suas argumentações e sentenças de acordo com a descrição do delito; e
4) permitirá reconhecer a real magnitude dessa conduta criminosa e masculina.
Para Carmen Antony, o enfrentamento ao feminicídio pressupõe, além da elaboração de sua tipificação penal, a construção e implementação de políticas públicas transversais sob a perspectiva de gênero, ou seja: as questões e experiências das mulheres devem estar presentes na elaboração de todas as políticas públicas, levando-se em conta as realidades econômicas, culturais, geracionais, de orientação sexual etc. Ademais, o acesso das mulheres à Justiça e a mudança ideológica das/dos operadores de Direito são imprescindíveis para a adequada aplicação da lei.
A tipificação penal do feminicídio deverá contribuir também para uma mudança nas dimensões simbólica e cultural, na medida em que confronta o Direito Penal androcêntrico, tributário da dominação masculina, com a garantia dos direitos humanos das mulheres.
Raras são as mulheres assassinadas sem que antes tivessem sofrido ameaças, perseguições, lesões corporais, assédio sexual, variados tipos de chantagens, entre outros tipos de violência. Logo, depreende-se que existe uma grande falha na atuação do poder público. Muitos dos assassinatos poderiam ter sido evitados com a devida aplicação das medidas protetivas, com maior atenção por parte dos agentes públicos dos sistemas de Segurança e da Justiça. Entretanto, o que se tem verificado é que, ao invés disso, as vítimas tiveram suas vidas banalizadas e não receberam proteção do Estado quando este foi acionado por meio do Poder Judiciário. Ainda existem aqueles/as que observam restritivamente a maneira de se vestir, as atividades laborais e as relações pessoais para desqualificar as vítimas, descaracterizar os atos como fatos isolados, desviar a atenção sobre o que realmente é importante: a segurança, o direito à vida e à dignidade das mulheres e jovens que são assassinadas.
A atuação efetiva e eficaz do Estado para prevenir os assassinatos praticados contra as mulheres inclui a devida atenção aos casos de agressões consideradas “menos graves”, o cumprimento da punição dos agressores e a garantia aos direitos humanos das mulheres.
Ainda há muito trabalho a ser realizado no que tange à mudança de paradigmas em relação à tipificação do crime de feminicídio e ao combate à violência institucional. Cabe a urgência na tipificação e na implementação de políticas sociais que melhorem as condições de vida das mulheres concorrendo para uma mudança dos valores culturais hegemônicos que têm justificado a violência contra as mulheres.
Referências
BRASIL, Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Relatório Final. Brasília, julho de 2013.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Departamento de Pesquisas Judiciárias. Pesquisa Atuação do Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha. Brasília, 2013.
GENEVA DECLARATION SECRETARIAT. The Burden of Armed Violence. Genebra, 2011.
WAISELFISZ. Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012 – Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil. CEBELA/FLACSO. Rio de Janeiro, agosto de 2012.
Lourdes Bandeira é socióloga, pesquisadora e professora da Universidade de Brasília. Atualmente é Secretária Executiva da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR).
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