Por Roberio Sulz*
Era sábado, por volta das nove horas, quando o ônibus acostou na Rodoviária de BH. Felício fora avisado, por telefone, que haveria motorista mais uma pessoa, em carro preto, para conduzi-lo até a chácara do deputado Altino Gomes.
Aberto o bagageiro, lá estava a zorra formada. Guaiamuns soltos para toda beira e banda e um generalizado arraso nas bagagens. Malas, caixas, sacolas e bolsas picotadas sem dó, nem escolha.
– Ai, minha frasqueira Louis Vuitton, novinha! Minha bolsa Vitor Hugo! Meu vestido de seda, especial para o casamento de minha sobrinha! Meus beijus secos triturados! Que horror! …
Ouvia-se um interminável festival de lamúrias, até choro e soluços. Contudo, o maior estrago ocorrera na caixa amarela. Totalmente dilacerada. Seu conteúdo esparramava-se pelo piso. Algo como folhas secas esverdeadas para chá e coisa parecida com farinha de trigo branca fina proveniente de um saco plástico rasgado.
Felício pisou fora. Não queria ser identificado como o dono daqueles malfeitores crustáceos. Viu um carro preto de portas abertas com dois cidadãos a lhe sorrir, não teve dúvida, jogou-se no banco traseiro. Cumprimentou, fechou a porta e pediu para vazar rapidinho dali, pois a situação poderia ficar ruim para ele.
Prontamente atendido, sem estranheza, foi levado para uma casa isolada, na Vila da Serra, região sul de BH, onde já era aguardado pelo chefe. Cidadão carrancudo, recebeu Felício com explícito mau humor, informando-lhe já ter conhecimento da lambança por ele causada no transporte da encomenda e no desembarque na rodoviária. Tomou-lhe o telefone e aplicou-lhe uma reprimenda interrogativa, dedo em riste:
– Como você foi perder a encomenda e dar ponto para os federais?
– Pensei em usar caixa de madeira, mas desisti para não levantar suspeita nos manuseadores de bagagem. Prometo ser mais cuidadoso n’outra oportunidade.
– Pois assim seja, se ainda lhe derem uma segunda chance. De qualquer forma, você vai ficar retido nesta casa para não bater com a língua nos dentes, nem correr o risco de ser identificado e seguido.
Foi alojado num quarto, sem acesso a telefone. Apenas um aparelho antigo de TV lhe servia de distração. Assistindo ao jornal televisivo local, dobrou atenção à matéria que abordava a apreensão de drogas no terminal rodoviário. A matéria tinha como chamada: “uma cambada de guaiamuns libertos no bagageiro de um ônibus oriundo do sul da Bahia frustrou a tentativa de fazer chegar a BH dois quilos de cocaína em pó e cinco tabletes prensados de maconha”.
Foi quando Felício entendeu estar sendo confundido com o dono da caixa amarela e mais: que lidava com gente dura do tráfico de drogas. Insistiu até esclarecer ao mandachuva criminoso a confusão. O que não lhe evitou mais um pito:
– Ainda assim, você é culpado por ter introduzido no compartimento de bagagem, aqueles guaiamuns. Foi a mando de quem?
Pelas bandas norte da cidade, na Pampulha, o dono da caixa amarela rasgada pelos guaiamuns também achava-se perdido. Evadiu-se do local, às carreiras, ao sentir a aproximação de policiais da PM, que, por rádio, já convocavam a presença dos federais. Não titubeou em entrar no auto dos emissários do deputado, achando que eram os funcionários da “organização”. Pediu urgência em retirar-lhe dali e levá-lo ao chefe.
No deslocamento, não trocou palavra. Chegando à chácara, foi amavelmente recebido do deputado Altino Gomes que educadamente mostrou surpresa por vê-lo de mãos vazias.
– E nossa encomenda? Indagou o deputado.
– A caixa arrebentou e tudo se esparramou pelo piso do bagageiro, sem condições de recolhimento e aproveitamento. E pior, logo apareceram os milicos. O senhor sabe do risco para esse tipo de transporte. Mesmo assim, tentei, achando estar fazendo o serviço seguro.
– Uai, amigo. Não se preocupe. Marcaremos outra data, talvez encontrando-nos lá mesmo na origem.
– Então, o senhor não vai me punir pela perda e lambança?
– Claro que não. Como punir um amigo que só nos queria brindar com seus dotes?
E continuou:
– Tenho uma suíte reservada e preparada para você. Fique conosco este fim de semana. Faremos uma churrascada. Soube que você maneja bem o espeto na brasa. Providenciarei sua passagem de volta para segunda-feira ou dia que melhor escolher.
– Obrigado, senhor. Farei o melhor para compensar minha falha.
Ao ver a mesma reportagem televisiva sobre o fiasco do transporte de drogas, o deputado Altino Gomes vibrou com a ação dos guaiamuns e chamou o hóspede para cumprimentá-lo pelo bem que fez à população belo-horizontina, interrompendo aquela ação criminosa.
Acanhado, o hóspede pediu para ser conduzido a delegacia responsável pelo caso, para fazer depoimento.
Liberado, tratou de vazar para onde ninguém soubesse.
Por sua vez, Felício teve seu aparelho telefônico sequestrado e despachado compulsoriamente de volta à Bahia, sob a ameaça de morte caso relatasse o acontecimento à polícia.
Quando pensava o episódio ainda estar sob segredo, o amigo deputado Nagib telefonou-lhe dizendo que soubera de toda a confusão, com o desbaratamento e prisão daquela quadrilha de traficantes, graças a seus guaiamuns.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Pensador por opção. [email protected]