Felício e seus guaiamuns – 1ª parte

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Por Roberio Sulz*

Felício, cidadão popular e querido por seus conterrâneos baianos alcobacenses, sempre se fazia presente nos tradicionais pontos de prosa da cidade. No Café Caravelense já tinha caderneta de fiado com Hélio. Começava com uma cachaça para servir de guia às cervejas que iriam refrescar sua goela até terminar o papo com Bianor e outros históricos. No Prexeca, tinha cadeira com seu cheiro.  Porém, atraía-o para lá, com mais força, o pastel preparado por d’Ajuda com bastante recheio de carne moída de primeira, escolhida e temperada sem economia de sabores. Esses eram os locais onde não deixava de “bater ponto” toda manhã. Nos finais de semana, alisava cadeiras e bancos nas cabanas da praia. No Cal, Careca, Sô Manoel, Compadre etc.

Vivia do aluguel de pastagens e alguns imóveis herdados de seu pai. Não era de ostentar riqueza. Morava modestamente com sua companheira em casa simples, na Rua Bráulio Nascimento.

Conhecia pelo nome e sobrenome, bem como se dizia amigo íntimo de quase todos os nativos e veranistas da região do extremo sul baiano. Sabia tim-tim por tim-tim do pessoal de Teófilo Otoni, cidade mineira, que sempre participou e ainda participa de modo majoritário da sociedade veranista alcobacense. Ascendência, descendência, endereço, profissão, situação econômica, amizades, com e sem crédito na praça e outros dados que só interessam aos bisbilhoteiros da vida alheia. Falava dos cinemas, mercado, ruas, praças e avenidas de Teófilo Otoni com a precisão de um nativo, embora nunca tivesse morado ou passado mais que algumas episódicas semanas por lá.

Bajulava como ninguém autoridades políticas, fossem baianas ou mineiras. Aproximava-se na cara dura, oferecia ajuda, favores e presentes. Intermediava a compra de peixe fresco, camarão, lagosta e outros frutos do mar. Para os aficionados de caranguejo e guaiamum, arranjava fornecedor com produtos selecionados. Não ficava por aí. Pilotava com maestria fogão e churrasqueira. De sua lavra, ficaram famosas as moquecas, os risotos os escaldados de caranguejo, a carne de sol de dois pelos, o pirão de leite e outras delícias.

Terminou conquistando a amizade do deputado estadual Nagib Cosac, nativo de Teófilo Otoni, que tinha residência de veraneio em Alcobaça, além de gosto preferencial pelas praias e por uma boa panelada de guaiamum. Quando chegava, Felício já havia encomendado, com antecedência, a estocagem e engorda de grandes guaiamuns para o amigo. O deputado, por seu turno, sempre lhe trazia boas cachaças e uísque 12 anos. Eram companheiros permanentes durante seu veraneio. Na praia, nos botecos, na praia, nos restaurantes… Divertiam-se com a prosa miúda.

Certa vez, Nagib avisou que levaria Altino Gomes e Cristiano Ramalho, dois colegas, também deputados, com suas respectivas esposas, para conhecer e curtir Alcobaça. Encomendou a Felício peixes, camarões e, especialmente, guaiamuns graúdos para uma panelada festiva com os convidados. E assim foi feito.

Contudo, sem ajuda do clima, com chuvas fortes, vento sul e outras adversidades a viagem foi desfeita. Todavia, as quatro dezenas de guaiamuns cevados estavam no ponto. Pena!

Tomando como ensinamento o provérbio árabe que diz “se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha”, Felício teve a ideia de levar os guaiamuns a Belo Horizonte, onde residiam os deputados. Ele mesmo os prepararia e serviria em lugar indicado. O deputado Nagib acatou a inciativa. Arranjou-lhe até hospedagem na chácara do deputado Altino Gomes, na Pampulha, onde guardaria e prepararia os guaiamuns. O anfitrião também providenciaria automóvel com motorista e um companheiro para pegar Felício na rodoviária e conduzi-lo à chácara.

Tudo acertado, Felício arrumou os robustos guaiamuns dentro de uma caixa de papelão larga e de pouca altura, fez alguns furos para permitir a troca de ar e a revestiu com TNT (tecido sintético poroso) preto para disfarçar o conteúdo vivo, proibido de ser transportado em bagageiros de ônibus.

Foi de automóvel até Teixeira de Freitas, onde embarcou no ônibus noturno da São Geraldo, com chegada em BH prevista para a manhã do dia seguinte. Os especiais cuidados de Felício para alojar sua caixa no porão bagageiro poderiam, mas, não levantaram suspeita por parte do ocupado despachante da rodoviária. Curiosamente, outra caixa de papelão amarelo, bem menor, sem a cobertura de TNT, ali também foi embarcada, sob os olhares atentos e zelosos do passageiro proprietário.

Ônibus executivo com sanitário a bordo, água potável e manta, tinha seu deslocamento quase ininterrupto, prevendo apenas uma parada em Ipatinga para troca de motorista e breve café.

Antes de saborear pão de queijo com um pingado, tradicional em Ipatinga, Felício desceu do veículo, passou rente ao bagageiro e pode ouvir ruídos como se seus guaiamuns estivessem em alvoroço. Não quis se preocupar. Mas, notou especial atenção do dono da caixa amarela postado por lá como se guardasse o compartimento de cargas contra intrusos. Ou por ter ouvido igualmente os ruídos de seus bichos? Desconfiou Felício. Continua.

*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Pensador por opção. roberiosulz@uol.com.br