Dois novos artigos na área de Carcinologia apresentam questões sobre a identificação de espécies de camarões. Um dos estudos descreve uma espécie até então desconhecida pela ciência; o outro realoca espécies em um outro gênero, mudando os nomes científicos. Essas questões são relevantes para o campo científico e para setores produtivos, uma vez que conseguir identificar corretamente as espécies permite o melhor aproveitamento alimentar e comercial e ajuda nos esforços de conservação ambiental.
Um dos autores presentes em ambos os artigos é o professor Fabrício Lopes de Carvalho, atuante no Centro de Formação em Ciências Agroflorestais (CFCAF) e pesquisador do tema. Em pesquisa anterior, ele e outros cientistas constataram que o método tradicional para distinguir as espécies, por meio da estrutura do rostro, era insuficiente e propuseram a verificação de estruturas sexuais masculinas como etapa adicional. Os estudos foram aceitos e publicados na revista Journal of Crustacean Biology. As publicações resultam de pesquisa realizada em parceria com a Universidade de Oxford, em um projeto conjunto financiado pelo CNPq para fomentar a internacionalização.
Os artigos publicados reforçam a necessidade de metodologias mais sofisticadas que combinem ecologia, morfologia e genética para a identificação coerente de espécies de camarão de água doce e alocação das mesmas em gêneros. De acordo com o professor Fabrício, erros nesse processo podem gerar consequências sérias para a conservação e para a exploração econômica e alimentar: “Esse problema é particularmente sensível na América do Sul, onde a fauna de camarões de água doce ainda é pouco conhecida. Essa lacuna no conhecimento prejudica desde estratégias de manejo e conservação até etapas fundamentais, como a própria avaliação de risco de extinção feita pelo ICMBio. Em muitos casos, a delimitação das espécies é incerta, o que fragiliza o processo de tomada de decisão.”
Espécie até então desconhecida
O primeiro estudo descreve uma dessas espécies até então desconhecida da ciência e que apresenta com uma característica diferente dos demais do gênero Macrobrachium: é desprovida de um palpo mandibular. A investigação foi descrita no artigo The description and ecology of a novel diminutive species of Macrobrachium Spence Bate, 1868 (Decapoda: Caridea: Palaemonidae) from Amazonia, the first lacking a mandibular palp [Descrição e ecologia de uma nova espécie diminuta de Macrobrachium Spence Bate, 1868 (Decapoda: Caridea: Palaemonidae) da Amazônia, a primeira sem palpo mandibular], assinada por Fabrício L. Carvalho, da Universidade Federal do Sul da Bahia (CFCAF/UFSB), Elmo P. Silva, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Thaís A. Mota, da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e Sammy De Grave, do Museu de História Natural da Universidade de Oxford.
A equipe de cientistas concluiu que os aspectos morfológicos – as formas do corpo – são insuficientes para a delimitação de gêneros em espécies de camarão. Isso porque a ausência de palpo mandibular da espécie Macrobrachium magalhaesi sp. nov é inédita no gênero Macrobrachium e existente em camarões de outros gêneros. Mesmo com essa característica diferenciada, a nova espécie apresenta todas as outras características diagnósticas do gênero. O nome da nova espécie é uma homenagem ao carcinólogo Dr. Célio Magalhães, que trabalhou por muitos anos no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, instituição que administra a Reserva Florestal Ducke, em Manaus, no estado do Amazonas, onde o estudo foi realizado.
A coleta de espécimes ocorreu em 32 pontos de amostragem, entre maio de 2018 e janeiro de 2024. Os camarões coletados foram analisados com microscopia, para a descrição morfológica. O camarão Macrobrachium magalhaesi sp. nov. apresenta rostro bem desenvolvido, dentes dorsais e ventrais, presença de dentes hepático e antenal, medindo entre 1,2 cm e 2,6 cm, com fêmeas maiores que machos.
As análises ecológicas, com um modelo computacional criado no software R, geraram os principais dados obtidos sobre o habitat. O Macrobrachium magalhaesi sp. nov. é mais frequente em igarapés de segunda ordem, em trechos rasos e com bastante acúmulo de material orgânico em decomposição, como folhas, galhos, flores, frutos, sementes e dejetos de animais, coexistindo com outras espécies. As informações sobre reprodução indicam que essa espécie produz poucos ovos grandes e as larvas têm desenvolvimento abreviado. É possível que essa espécie tenha sido coletada anteriormente e confundida com indíviduos jovens de outras espécies, por ser bem pequena.
Camarões com novos nomes científicos
Já no segundo artigo, a discussão é em torno da vinculação correta de espécies de camarões a um gênero, novamente instigada pelo avanço no entendimento sobre características de identificação. O grupo Pseudopalaemon, no caso, deveria ser considerado um sinônimo júnior do gênero Macrobrachium. O estudo intitulado Multigene analysis reveals that Pseudopalaemon Sollaud, 1911 is a junior synonym of Macrobrachium Spence Bate, 1868 (Decapoda: Caridea: Palaemonidae) [Análise multigênica revela que Pseudopalaemon Sollaud, 1911 é sinônimo júnior do gênero amplamente distribuído Macrobrachium Spence Bate, 1868 (Decapoda: Caridea: Palaemonidae)] é assinado por Thaís A. Mota, da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Sammy De Grave, do Museu de História Natural da Universidade de Oxford, e Fabrício L. Carvalho, da Universidade Federal do Sul da Bahia (CFCAF/UFSB). A pesquisa recebe fomento da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq).
A pesquisa realizada conclui pela realocação e renomeação das espécies depois de analisar a genética de 40 espécimes de camarões de 38 espécies, sendo três delas vinculadas ao grupo Pseudopalaemon, 25 ao Macrobrachium e dez ao Palaemon. A análise genética levou a considerar que as três espécies apresentam características de Macrobrachium, sendo a P. amazonensis e P. chryseus agrupados com espécies amazônicas (M. jelskii, M. amazonicum) e a espécie-tipo P. bouvieri agrupada com espécies do clado platino (M. borellii, M. brasiliense). Com isso, a equipe de cientistas propõe que todas as sete espécies antes denominadas sob o grupo Pseudopalaemon passem a ser nomeadas sob o gênero Macrobrachium.
A ausência do palpo mandibular é homoplásica, uma vez que perdas independentes do palpo ocorreram múltiplas vezes em linhagens sul-americanas, incluindo a nova espécie descrita pelos pesquisadores no artigo descrito no começo deste texto. Por isso, é insuficiente como critério genérico. Estudos anteriores nessa área haviam sinalizado para a fragilidade do emprego do critério morfológico que antes justificava a existência do grupo Pseudopalaemon. A família Palaemonidae, à qual esses grupos pertencem, inclui mais de 1.100 espécies em 227 gêneros, o que dá uma ideia da complexidade de identificar correta e coerentemente cada espécie e cada gênero.
O professor Fabrício Lopes de Carvalho explica que, no campo da taxonomia, gêneros são categorias que agrupam espécies próximas, devendo refletir suas relações de parentesco evolutivo. “Quando uma revisão demonstra que determinadas espécies não compartilham uma história comum com as demais do gênero em que estavam inseridas, torna-se necessário realocá-las para que a classificação seja coerente com as relações de parentesco entre as espécies. Essa correção é fundamental, pois a alocação adequada em gêneros corretos impacta desde estudos evolutivos e biogeográficos até estratégias de conservação e manejo. Foi exatamente isso que ocorreu com as espécies antes atribuídas a Pseudopalaemon, que, à luz de novas evidências morfológicas e moleculares, revelaram maior afinidade com Macrobrachium, passando a ser incluídas neste gênero e tornando sua classificação mais precisa e alinhada às relações de parentesco reais.” A conclusão do artigo inclui a defesa do uso de métodos de análise molecular para redefinição da sistemática da família Palaemonidae.
A questão da identificação das espécies é mais ampla. O professor Fabrício afirma que o mesmo problema ocorre com outros grupos de crustáceos, alguns dos quais são temas do mesmo projeto em parceria com a Universidade de Oxford, em uma escala global. Além disso, o Grupo de Pesquisa em Carcinologia, coordenado por ele, conduz outras investigações no Sul da Bahia: “Temos uma linha de pesquisa que investiga a existência de novas espécies de caranguejos de água doce em rios da região. Conduzimos também estudos que buscam avaliar o efeito de atividades antrópicas sobre espécies nativas de crustáceos, sobre a produção de espécies nativas de camarões para alimentação humana e sobre o uso de fontes alternativas para a alimentação de camarões.” Por Heleno Rocha Nazário / Jornalista – Mestre em Comunicação Social (PPGCOM/PUCRS) e Coordenador do Setor de Jornalismo – ACS.