Como o programa nuclear militar brasileiro foi interrompido por pressões externas, espionagem e uma morte misteriosa que levantou suspeitas
No auge da Guerra Fria, o Brasil ousou sonhar com a soberania nuclear, mas sua ambição de dominar o ciclo completo da energia nuclear, incluindo possíveis aplicações militares, foi frustrada por uma combinação de pressões externas, espionagem sofisticada e eventos que permanecem envoltos em mistério.
Documentos históricos e denúncias, como as de Edward Snowden, ex-técnico da NSA, revelam que os segredos brasileiros foram alvo de bisbilhotagem por décadas, com destaque para a atuação de Israel e dos Estados Unidos. Um dos episódios mais marcantes envolve a morte suspeita do tenente-coronel José Alberto Albano do Amarante, engenheiro nuclear da Aeronáutica, e as operações do serviço secreto israelense, o Mossad, no Brasil.
Um programa nuclear ambicioso
Na década de 1970, sob o regime militar, o Brasil desenvolveu um programa nuclear secreto com objetivos que iam além da energia civil. A parceria com o Iraque, iniciada naquela época, garantia recursos financeiros em troca de compartilhamento de tecnologia nuclear. O responsável pelo programa na Aeronáutica era José Alberto Albano do Amarante, engenheiro eletrônico formado pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e considerado o “pai” da pesquisa nuclear brasileira.
Ele liderava o Laboratório de Estudos Avançados, que buscava desenvolver o enriquecimento de urânio por raios laser, uma técnica mais avançada e menos custosa que o método de centrífugas. O programa, centrado em São José dos Campos (SP), no Centro Técnico Aeroespacial (CTA), tinha como meta estratégica posicionar o Brasil como uma potência tecnológica. No entanto, a possibilidade de aplicações militares, como a produção de artefatos nucleares, despertou a atenção de potências estrangeiras. “O Brasil não pode aceitar limitações ao seu desenvolvimento nuclear, pois isso compromete nossa soberania”, dizia Amarante, segundo relatos de colegas próximos.
A parceria com o Iraque, que incluía remessas secretas de urânio enriquecido disfarçadas em material bélico da Avibrás, intensificou as suspeitas internacionais.
Espionagem e sabotagem: o papel do Mossad
Documentos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), revelados anos depois, mostram que o Brasil era alvo constante de espionagem. O CTA e instituições como a Unicamp e a USP sofreram tentativas de aliciamento de cientistas por agentes estrangeiros, incluindo americanos e israelenses. Um caso emblemático envolveu Samuel Giliad, também conhecido como Guesten Zang, um suposto agente do Mossad que operava em São José dos Campos.
Sob a fachada de gerente do Hotel Eldorado, Giliad, apelidado de “Mister Pipe” por seu hábito de fumar cachimbo, coletava informações sobre atividades nucleares e industriais.“Ele era extremamente simpático, mas fazia perguntas muito específicas sobre o que a Aeronáutica fazia em Cachimbo”, relatou um ex-funcionário do hotel à época.
Giliad instalou escutas nos quartos e organizava eventos sociais para extrair informações de secretárias e gerentes de indústrias estratégicas. Suas tentativas de se aproximar de Amarante, porém, foram frustradas pela cautela do oficial. Quando o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa) começou a investigá-lo, Giliad deixou o Brasil abruptamente, anunciando uma viagem à Argentina.
O ápice das suspeitas veio com a morte de Amarante, em 3 de outubro de 1981. Diagnosticado com uma leucemia fulminante, ele faleceu em apenas dez dias. A família e colegas levantaram a hipótese de envenenamento por radiação, possivelmente orquestrado por serviços secretos estrangeiros. “Meu marido dizia que era seguido constantemente, e o dentista alertou que Giliad fazia perguntas estranhas”, afirmou a viúva de Amarante à época.
A exumação do corpo, anos depois, revelou sinais de violação da sepultura, intensificando as teorias de sabotagem. Em 1981, o jornal Latin America Weekly Report publicou detalhes surpreendentes sobre as atividades nucleares secretas do Brasil, incluindo as remessas de urânio ao Iraque. O Mossad, segundo especialistas, já tinha conhecimento prévio dessas operações e as documentou com fotos.
O vazamento coincidiu com o ataque aéreo de Israel ao complexo nuclear de Tamuz, no Iraque, em 1981, destruindo a principal infraestrutura que apoiava o programa brasileiro. “O ataque a Tamuz foi um golpe direto no Brasil, pois dependíamos da parceria iraquiana”, afirmou um ex-militar anônimo ligado ao programa nuclear.
Pressões americanas e o fim do sonho nuclear
Além de Israel, os Estados Unidos também desempenharam um papel crucial na interrupção do programa nuclear brasileiro. Em 1977, durante uma visita do então secretário de Estado americano Cyrus Vance ao Brasil, uma pasta com documentos confidenciais foi esquecida no gabinete do presidente Ernesto Geisel.
Antes de devolvê-la, autoridades brasileiras copiaram os papéis, que detalhavam estratégias americanas para pressionar o Brasil a abandonar o programa nuclear, incluindo o uso da rivalidade com a Argentina e restrições a aliados europeus, como a Alemanha Ocidental, que fornecia tecnologia nuclear ao Brasil. “Os EUA nunca aceitaram que o Brasil dominasse o ciclo nuclear completo”, aponta o cientista político Dawisson Belém Lopes, da UFMG, em estudo publicado pela revista Science and Public Policy.
A pressão internacional, somada a erros internos, como o isolamento da “nucleocracia” militar e a repressão a cientistas, minou o programa. O acordo nuclear com a Alemanha, firmado em 1975, foi parcialmente sabotado por restrições impostas pelos EUA aos parceiros europeus da Kraftwerk Union (KWU), impedindo a transferência completa de tecnologia. Em 1981, o ataque israelense a Tamuz selou o destino do programa brasileiro, que perdeu financiamento e apoio técnico.
As consequências para o Brasil
Hoje, em 2025, o Brasil permanece limitado no cenário nuclear global. Com apenas as usinas de Angra 1 e 2 em operação, o país depende de tecnologia externa e não domina o ciclo completo do combustível nuclear. A ausência de uma capacidade nuclear robusta reduz a influência geopolítica brasileira, especialmente em um contexto de tensões crescentes, como a nova Guerra Fria tecnológica entre China e Estados Unidos.
A história do programa nuclear brasileiro é um lembrete das complexidades da soberania tecnológica em um mundo dominado por grandes potências. A espionagem, as sabotagens e a morte de Amarante deixaram cicatrizes que ainda ecoam. “O Brasil perdeu a chance de ser uma potência nuclear por falta de visão estratégica e pressões externas implacáveis”, lamenta João Paulo Nicolini Gabriel, doutor em Ciência Política.
Um paralelo inesperado: a pecuária sob ataque
Curiosamente, a espionagem contra o Brasil não se limitou ao setor nuclear. Em 2008, a Irish Farmers’ Association (IFA) produziu um vídeo difamando a pecuária brasileira, alegando falta de controle sanitário e uso de medicamentos proibidos. As imagens, gravadas em propriedades de Mato Grosso do Sul, visavam bloquear a retomada das exportações de carne bovina para a Europa após um foco de Febre Aftosa em 2006. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) investigou o caso, e a pressão diplomática brasileira levou à retirada do material. “Era uma tentativa clara de sabotar nossa economia”, afirmou um representante do Ministério da Agricultura à época.
A tragédia de Alcântara: acidente ou sabotagem?
Em 22 de agosto de 2003, o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, foi palco da maior tragédia do Programa Espacial Brasileiro. O foguete VLS-1 V03, que levaria os satélites SATEC e UNOSAT à órbita, explodiu na plataforma três dias antes do lançamento, matando 21 técnicos e engenheiros. “O calor atingiu 3 mil graus, fundindo corpos ao aço da plataforma”, descreveu o piloto de helicóptero Aluisio Mendes, que participou do resgate.
A investigação oficial, conduzida pela Aeronáutica com apoio de técnicos russos, apontou uma “ignição prematura” causada por uma descarga eletrostática. No entanto, teorias de sabotagem ganharam força devido à localização estratégica de Alcântara, próxima à Linha do Equador, que economiza até 30% de combustível em lançamentos.
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) investigou a possibilidade de ação do serviço secreto francês, motivada pela concorrência com o Centro Espacial de Kourou, na Guiana Francesa. “A França tinha interesse em manter sua vantagem no mercado de lançamentos”, afirmou uma fonte militar à Folha de S.Paulo em 2013.
Além disso, documentos revelados pelo WikiLeaks em 2011 mostraram que os Estados Unidos pressionaram aliados, como a Ucrânia, para não transferirem tecnologia de foguetes ao Brasil. “Os EUA nunca quiseram que o Brasil desenvolvesse foguetes próprios”, diz um telegrama do Departamento de Estado.
Apesar das suspeitas, nenhuma evidência concreta de sabotagem foi encontrada, e o relatório oficial apontou “falhas latentes” e “degradação das condições de trabalho” como causas principais.
O que fica do passado?
O programa nuclear brasileiro e os episódios de espionagem revelam como interesses externos moldaram o destino do país em áreas estratégicas. A falta de uma contraespionagem eficaz, como apontado por documentos do SNI, deixou o Brasil vulnerável. No setor espacial, Alcântara voltou a realizar lançamentos, como o da sul-coreana Innospace em 2023, mas o programa espacial brasileiro ainda enfrenta atrasos tecnológicos.
As lições de Amarante, do Mossad e das pressões americanas continuam relevantes em um mundo onde a tecnologia e a geopolítica caminham de mãos dadas. Por Alan.Alex / Painel Político