Empatia

627

Aos sete anos, em diálogo com sua mãe, Dinah, Ivo confessou uma curiosidade sobre si mesmo. Percebera que, em suas conversas, conseguia saber com antecedência o que seu interlocutor iria falar. Acreditava, também, já ter vivenciado o diálogo ou aquela situação presente, em algum episódio passado. Indagou se isso seria comum a todos, a muitas pessoas ou ocorreria apenas com ele.
Dinah, biomédica, pesquisadora na área de neurociência, movida pelas perguntas, chamou-o a uma prosa descontraída e sem pressa. Primeiro, tentou dissuadi-lo da ideia de achar-se anormal. Explicou-lhe ser comum pessoas sentirem a sensação de já ter vivido um fato relatado. Segundo ela, tratava-se de mera “fantasia mental”. Para ilustrar, reconheceu também ter experimentado essas sensações. Logo, melhor não transformar isso em preocupação, aconselhou e concluiu.
Ivo aceitou as explicações e passou a rejeitar conjecturas sobre o assunto.  Todavia, com o passar do tempo, percebeu também que compartilhava a dor sentida por alguém ou algum animal vítima de um machucado. Nesse caso, a dor compartilhada era mais intensa quanto a pessoa e o animal ferido lhe fossem mais queridos.
Porém, foi num jogo de bingo que Dinah constatou a aptidão de seu filho para antever fatos. Notou que Ivo marcava o número na cartela antes de o locutor anunciá-lo no microfone. Num dos sorteios, faltava-lhe apenas um número para ganhar o prêmio. Antes do narrador proclamar o número da “pedra” sorteada, Ivo, em voz alta, declarou-se ganhador.
O caso de Ivo foi levado a sério. Submetido a provas e testes laboratoriais, não deixou dúvida sobre sua excepcionalidade mental. Medida, com rigor e refinamento tecnológico, reconheceu-se que suas predições eram verdadeiras e ocorriam num espaço de tempo, um “gap” quase imperceptível. Já o sentimento solidário à dor alheia vinha-lhe após a manifestação de dor sentida pelo outro. Variava em tempo, intensidade e exatidão na resposta, obedecendo a uma relação direta com seu grau de parentesco, convivência e afeição com a vítima.
A raridade suscitou discussão do caso em mesa temática docente na universidade onde Dinah trabalhava. Ganhou interesse internacional do grupo de neurocientistas ligados à teoria dos “neurônios-espelho” (Neuron Mirror).
Segundo essa teoria, pessoas e mamíferos mais evoluídos, por ação de um grupo de neurônios localizado no córtex cerebral, são levados a predizer ações de outro ser antes de sua exteriorização.
Supõe-se que isso ocorra por conta de discretos e quase imperceptíveis sinais precursores da ação por vir do indivíduo-agente. Sinais que podem ser expressões faciais, movimentos, emissão de sons e outros, muitas vezes entendidos como cacoetes. Os neurônios-espelho do indivíduo-observador seriam capazes de perceber tais manifestações no indivíduo-agente ainda na sua fase precursora, de “planejamento” ou na base da intenção operativa. O sinal percebido toma, então, o caráter de estímulo e segue caminho às instâncias cerebrais com função de decodificá-los à luz da memória.
Por seu turno, o indivíduo-observador, assim estimulado, pode reagir de várias maneiras: imitar, antecipar uma crítica, repreender ou apresentar qualquer outra resposta, como expressão de gosto ou desgosto, choro, muxoxo, sorriso, grito etc.
Contudo, não há como garantir que o aparato físico promotor dessa interatividade se resuma a discretos sinais. É possível que haja muito mais! É nesse vazio de conhecimento que ainda repousam ilações metafísicas, algumas religiosas, a banalizar o fenômeno.
Uma das perguntas de Ivo a sua mãe pode ser hoje respondida, com base em estudos de neurofisiologia, louvados em imagens e resultados de ressonância magnética: todos os seres humanos têm seu conjunto de neurônios-espelho. Alguns em função mais expressiva que outros. Cabe acrescentar que o grau e a perfeição da percepção, ou da interatividade, tem forte relação com a sensibilidade do observador, sua proximidade física, sentimental, vivencial e de identificação genética com o agente.
Outra indagação de Ivo tem resposta do pesquisador húngaro Gergely Csibra, do Departamento de Psicologia do Birkbeck College, no Reino Unido, quando sugere que “devido a essa capacidade interativa, podemos imaginar aquilo que se passa na mente do outro, colocando-nos no lugar da outra pessoa, compreendendo suas ações”, antevendo, pois, suas ações. Com isso, Csibra infere, ainda, que os neurônios-espelho funcionem além do simples espelhamento, pois parecem ser “instrumentos de antecipação de possíveis respostas à ação do outro”.
Ivo, personagem que ilustra esta crônica, é meramente virtual. Tem o papel de levar ao leitor o conhecimento de mais uma maravilha de nossa competência mental interativa, não fantasiosa, tampouco metafísica. Certamente, não será a última.
A descoberta e a evolução de estudos científicos sobre os neurônios-espelho estão a permitir explicações não banais sobre a empatia entre pessoas, bem como desmistificar ilações populares que querem justificar o preconceito sob alegação de que “um não vai com a cara (ou com o santo) do outro” ou o sentimento de “geração de carga negativa ou positiva no relacionamento entre pessoas”.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opçã[email protected]