EUA não retiraram todas as acusações; acordo prevendo confissão preocupa especialistas em liberdade de imprensa
A defesa fez um acordo com o Departamento de Justiça dos EUA mediado pelo Supremo Tribunal Federal britânico, pelo qual o fundador do Wikileaks vai se declarar culpado de conspiração e divulgação de documentos de segurança nacional, com base na lei de Espionagem que data de 1917, e sentenciado a 62 meses de prisão.
Como este é o tempo em que ele ficou preso na penitenciária de Balmarsh, em Londres, aguardando a tramitação do processo de extradição, Assange deixou a cadeia e após a audiência, marcada para quarta-feira (26), seguirá para a Austrália, seu país natal, onde já estão sua mulher, Stella, e os dois filhos.
O Wikileaks deu a notícia da liberdade de Assange na noite de terça-feira e publicou suas primeiras fotos fora da cadeia, embarcando no avião, com cabelos mais curtos e aparência saudável.

Stella Assange divulgou uma imagem da tela do celular recebendo uma ligação do marido em Sydney, onde o aguarda.

O acordo da liberdade de Assange
Saipan, que faz parte das Ilhas Marianas do Norte, é um território americano, mas não um dos 50 estados, condição semelhante à de Porto Rico, por exemplo, que tem leis próprias.
O local foi escolhido para evitar que o fundador do Wikileaks entrasse oficialmente nos EUA, e por ser mais perto da Austrália.
Apesar do alívio de seus apoiadores diante do risco de ele passar o resto da vida em uma cadeia dos EUA se fosse condenado nos 18 processos e até de cometer suicídio, os EUA não retiraram todas as acusações contra ele, o que tem sido lembrado em meio às mensagens sobre a vitória judicial, política e diplomática.
O fato de uma declaração de culpa ter sido a única alternativa deixa uma nuvem de preocupação sobre o risco de criminalização de quem vaza ou publica documentos sigilosos, mesmo que sob a perspectiva do interesse da sociedade.
Este foi o tema de uma campanha feita pela Repórteres Sem Fronteiras na defesa de Assange, chamada “Danos Colaterais”.
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“Se o governo dos EUA conseguir extraditar Assange e processá-lo ao abrigo da Lei de Espionagem, qualquer um que publique reportagens baseadas em informações confidenciais vazadas poderá ser o próximo – e o impacto resultante será, em última análise, sobre o nosso direito de saber”, disse na época Rebeca Vincent, diretora global de campanhas da RSF.
Imenso apoio internacional a Assange não foi suficiente para convencer os EUA
Julian Assange nasceu na Austrália, e por isso o governo de seu país teve papel fundamental no acordo que envolveu os EUA e o Reino Unido, com o primeiro-ministro Antonhy Albanese entrando na briga para levá-lo de volta para casa pessoalmente.
O que ele não conseguiu, nem a defesa nem as organizações de direitos humanos e de liberdade de imprensa foi convencer os EUA de que o que o fundador do Wikileaks fez não foi crime, e que jornalismo não é crime.
Esta foi a bandeira nos 12 anos em que Assange ficou enclausurado, primeiro como refugiado na embaixada do Equador em Londres entre 2012 e 2019 e depois na penitenciária de Belmarsh.
Ele nunca foi julgado no Reino Unido. A batalha jurídica foi em torno da extradição pedida pelos EUA, sob alegação de que Assange colocou vidas em risco quando ajudou a ex-analista de inteligência do exército dos EUA, Chelsea Manning, a roubar telegramas diplomáticos e arquivos militares, incluindo vídeos mostrando ataques a civis, que o WikiLeaks colocou online em 2010.
Em uma primeira decisão, em janeiro de 2021, o tribunal entendeu que havia risco de agravamento de sua saúde e suicídio se ele fosse para o país, mas a sentença foi revista em instâncias superiores.
A defesa seguiu argumentando sobre os riscos, diante de garantias oferecidas pelos EUA. O último lance aconteceu em maio, quando um painel de dois juízes considerou as garantias insuficientes, concedeu o direito de nova apelação, e as duas partes tentaram entrar em acordo para uma saída.
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Declarações cuidadosas durante o processo
O que acabou acontecendo – mas não da forma como os defensores da liberdade de imprensa queriam, embora tenha sido o reparo para uma injustiça que poderia ser bem maior.
Após a saída de Assange do Reino Unido, as declarações de sua mulher, do Wikileaks, dos familiares que se empenharam na mobilização internacional e das organizações de liberdade de imprensa têm sido cautelosas, sem confrontar a confissão de culpa, tom diferente do que vinham adotando.
É compreensível que neste momento tudo o que nenhum deles quer é um retrocesso. Mas não é improvável que depois de tudo resolvido, Assange e seus apoiadores se manifestem de forma mais direta.
O tom da cobertura de imprensa também é positivo, concentrando-se no fim do drama, enquanto alguns fazem a observação sobre as condições impostas para esse desfecho.
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O risco do precedente
Em um artigo no portal acadêmico The Conversation, Peter Greste, jornalista que já foi preso no Egito, hoje leciona na Macquarie University e preside o grupo de liberdade de imprensa Alliance for Journalists’ Freedom, escreveu:
“Este caso teve inegavelmente um sério efeito inibidor no jornalismo de interesse público e envia uma mensagem aterrorizante a fontes que tenham provas de abusos por parte de governos e de seus representantes.
Embora seja impossível quantificar o número de histórias não contadas, é difícil imaginar que [o caso Assange] não tenha assustado potenciais denunciantes e repórteres.”
Greste acredita que a liberdade de Assange condicionada a uma confissão de culpa também deixa em aberto a questão do precedente.
“Ainda não está claro se os futuros governos poderão utilizar a confissão como fundamento para utilizar a Lei da Espionagem para perseguir o jornalismo desconfortável.”
O jornalista lembra que “como já foi visto, líderes com uma tendência autoritária tendem a utilizar todas as alavancas disponíveis para controlar o fluxo de informação, e isso deve certamente preocupar quem acredita no poder corretivo de uma imprensa livre”.
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Políticos dos EUA e Reino Unido se livraram de um problema
O desfecho do caso Assange é uma vitória para o primeiro-ministro Anthony Albanese e um alívio para dois outros líderes.
Joe Biden, presidente dos EUA, se livrou das pressões para retirar as acusações e do risco de ter que administrar protestos durante a campanha eleitoral caso ele fosse extraditado.
E Keir Starmer, que se as pesquisas estiverem corretas deverá se eleger primeiro-ministro britânico no dia 4 de julho, não terá mais o problema Assange no quintal de casa. Fonte: Luciana Gurgel / Mediatalks / Uol