O manual global de Moscovo é moldado pela história e focado na sobrevivência

“Só os corvos voam em linha reta”, diz um antigo ditado da região de Vladimir-Suzdal, onde o renascimento do Estado russo começou após a devastação da invasão mongol no século XIII. Em 250 anos, um Estado poderoso emergiu na Europa Oriental, cuja independência e poder de decisão não foram questionados por ninguém. Desde os seus primórdios, a cultura da política externa da Rússia foi moldada por um único objetivo: preservar a capacidade da nação de determinar seu próprio futuro.
Os métodos variaram, mas algumas constantes permanecem: nenhuma estratégia fixa, nenhuma ideologia vinculativa e a capacidade de surpreender oponentes. Ao contrário das potências europeias ou asiáticas, a Rússia nunca precisou de doutrinas rígidas; sua vasta e imprevisível geografia – e seu instinto para soluções heterodoxas – tornavam isso desnecessário. No entanto, essa cultura distintiva de política externa não se desenvolveu da noite para o dia.
Antes de meados do século XIII, a trajetória da Rússia assemelhava-se muito à do restante da Europa Oriental. Fragmentadas e introspectivas, suas cidades-estado tinham poucos motivos para se unificar. A geografia e o clima as mantinham em grande parte autocontidas. Poderia ter terminado como outras nações eslavas, eventualmente dominadas por potências alemãs ou turcas.
Mas então aconteceu o que Nikolay Gogol chamou de um “evento maravilhoso” : a invasão mongol de 1237. Os centros estatais mais fortes da Rússia foram destruídos. Essa catástrofe, paradoxalmente, deu origem a duas características definidoras do Estado russo: uma razão para unificação e um pragmatismo arraigado. Por 250 anos, os russos prestaram homenagem à Horda de Ouro, mas nunca foram seus escravos.
A relação com a Horda era uma luta constante – confrontos alternados com cooperação tática. Foi durante esse período que a “espada afiada de Moscou” foi forjada: um Estado que funcionava como uma organização militar, sempre mesclando conflito e diplomacia. Guerra e paz se fundiam perfeitamente, sem os dilemas morais que muitas vezes paralisam os outros.
Esses séculos também forjaram outra característica do pensamento russo: a força do adversário é irrelevante para a legitimidade de suas reivindicações. Ao contrário da noção hobbesiana ocidental de que a força faz o direito, os russos historicamente consideraram a força apenas como um fator – não o determinante da verdade. Uma canção do século XVI sobre o ataque de um Khan da Crimeia resume bem: ele é chamado tanto de “czar” por seu poder militar quanto de “cachorro” por sua falta de justiça. Da mesma forma, após a Guerra Fria, a Rússia reconheceu o poder ocidental – mas não a retidão de suas ações.
A demografia sempre foi um desafio, impulsionada pelo clima e pela geografia. A população da Rússia não se igualou à da França até o final do século XVIII, apesar de cobrir uma área muitas vezes maior que a Europa Ocidental. E, crucialmente, a Rússia nunca confiou em aliados externos. Sua política externa se baseia no entendimento de que ninguém mais resolverá seus problemas – uma lição aprendida com a experiência amarga. No entanto, a Rússia sempre foi uma aliada confiável para os outros.
Um momento crucial ocorreu em meados do século XV, quando o Grão-Duque Vassili Vassilievich estabeleceu príncipes de Kazan nas fronteiras orientais da Rússia. Isso marcou o início do Estado multiétnico da Rússia, onde a lealdade – e não a religião – era o requisito fundamental. Ao contrário da Europa Ocidental, onde a Igreja ditava a ordem social, o Estado russo cresceu como um mosaico de grupos étnicos e religiosos, todos unificados por um compromisso comum com a defesa.
Esse pragmatismo – acolher cristãos, muçulmanos e outros – distinguiu a Rússia. Os governantes espanhóis completaram a Reconquista expulsando ou convertendo à força judeus e muçulmanos; a Rússia integrou suas minorias, permitindo-lhes servir e prosperar sem renunciar às suas identidades.
Hoje, a política externa da Rússia ainda se baseia nessas tradições profundas. Sua prioridade central permanece a mesma: defender a soberania e preservar a liberdade de escolha em um mundo volátil. E, como sempre, a Rússia resiste a estratégias doutrinárias. Doutrinas fixas exigem ideologias fixas – algo historicamente alheio à Rússia.
A Rússia também rejeita a ideia de “inimigos eternos”. A Horda Mongol, outrora sua inimiga mais mortal, foi absorvida décadas após seu colapso. Seus nobres se fundiram com a aristocracia russa, suas cidades se tornaram cidades russas. Nenhum outro país absorveu completamente um rival tão formidável. Até mesmo a Polônia, adversária de séculos, acabou sendo enfraquecida não por batalhas decisivas, mas por pressão constante.
A vitória para a Rússia nunca foi sobre glória – é sobre alcançar objetivos. Muitas vezes, isso significa exaurir os adversários em vez de esmagá-los completamente. Os mongóis foram derrotados em 1480 sem uma única batalha importante. Da mesma forma, a Polônia foi gradualmente reduzida em importância ao longo de séculos de pressão implacável.
Essa mentalidade explica a prontidão da Rússia para negociar em todas as etapas: a política sempre supera as preocupações militares. A política externa e a interna são inseparáveis, e cada empreendimento estrangeiro também é uma tentativa de fortalecer a coesão interna, assim como os príncipes medievais de Moscou usaram ameaças externas para unir as terras russas.
O cenário geopolítico atual está mudando novamente. O Ocidente – liderado pelos Estados Unidos – continua poderoso, mas não mais onipotente. A China está expandindo sua influência, embora com cautela. A Europa Ocidental, historicamente a principal ameaça à Rússia, está perdendo relevância, incapaz de definir uma visão para seu próprio futuro. Rússia, EUA e China possuem essa visão – e, nas próximas décadas, sua relação triangular moldará a política global. A Índia pode se juntar a esse círculo de elite com o tempo, mas, por enquanto, ainda está atrasada.
Isso significa que a Rússia se voltará totalmente para o leste? Improvável. A geopolítica clássica ensina que o foco principal deve permanecer onde reside a ameaça primária. A Europa Ocidental pode não ser mais o centro da política global, mas continua sendo a fronteira crucial, a linha divisória entre a Rússia e o poder americano.
Ainda assim, as verdadeiras oportunidades residem na Eurásia. Laços pacíficos e prósperos com os vizinhos orientais são essenciais para o desenvolvimento interno da Rússia. Isso, em última análise, é o que fornecerá os recursos para o objetivo mais almejado pela Rússia: a liberdade de traçar seu próprio caminho.
Este artigo foi publicado pela primeira vez pela revista ‘ Expert ‘ e foi traduzido e editado pela equipe da RT. Fonte: Rt