Lá pelos anos sessenta, desembarcou na localidade de Barro Seco, no sertão pernambucano, Diógenes, jovem padre jesuíta, com o fim de cobrir lacuna vicarial deixada, havia mais de mês. Aliás, naquele lugar, não parava vigário. Sua chegada levou importantes figuras locais até a sombra da cajazeira, onde a jardineira de seu Afonso fazia ponto de parada em sua rota de Salgueiro a Belém do São Francisco. Não era uma rodoviária, mas um tosco abrigo, coberto com telhas de pau-ferro lascado. Fincados no chão, dois pesados bancos. Bem defronte ao armazém de Neemias.
Padre Diógenes deixou a jardineira, num pulo, mostrando toda sua vitalidade, natural nos seus vinte e cinco anos. Além da mala, trazia uma valise de viagem e um violão devidamente encapado.
Prontamente, Nezão mirou forte no moço de batina, viu nele um belo e forte rapaz, fazendo mais o tipo de atleta e artista que de padre. Cuspiu no chão, deixou o local chamando os quatro amigos que o acompanhavam naquele receptivo. Resmungava em voz alta:
– Esse bispo não tem jeito. É compincha de Dom Helder. Só manda pra cá esses padrecos, metidos a artista e chegados ao vermelho. O último, ligado a Chico Julião, nós o expulsamos debaixo de surra, por se engraçar com as esposas de Joel e Camilo e fazer discurso para a ralé do pé sujo. Agora, chega esse aí já se apresentando como boneco de circo. Que não se faça merecedor de relho no lombo!
– Nem de tiro no traseiro, emendou Vado ajeitando o revolver no coldre.
Ao contrário da opinião dos homens, a mulherada recebia Diógenes com beijos e abraços, alguns mais apertados e demorados. Nezinha fez questão de acompanhá-lo até a pequena casa paroquial anexa à igreja, onde doravante habitaria.
Diógenes fora previamente alertado e orientado sobre a sociedade de Barro Seco, tida como profana e não injustamente achincalhada como “chifrolândia”. Ainda corria boato de ser valhacouto de pistoleiros. Contudo, soube impor-se pela seriedade e carinho no tratamento igualitário a todos. De conversa macia, mostrava-se paciente conselheiro e pastor. Tornou-se também respeitado como dono de invejável cultura geral. Lecionava, no ginásio local, sem remuneração, além de religião, latim, português e geografia.
Desportista, não perdia um bate-bola com a turma jovem. Bom de violão, afinado, com excelente voz e refinado repertório, era indispensável nas rodas de serestas. Amado pela população, passou a ser tratado como Padre Doginho, ou simplesmente Doginho. Todavia, suas posições sociais, voltadas para a defesa, compreensão e misericórdia dos pobres e excluídos, não agradavam a uns e outros.
Embora estranho naquela sociedade pecaminosa, Padre Doginho gozava de plena confiabilidade. Mesmo com seu jeito de galã de cinema, ninguém ousava lhe atribuir suspeitas.
Nezinha, agente postal e mulher do telegrafista Hildeu, era a cuidadora da igreja e da casa paroquial. Contava com os serviços domésticos da troncuda mulata Dorvalina, para manter as dependências sacras: limpeza, cozinha, lavagem de roupas pessoais e alfaias. Seu marido, coitado, quase não tinha trabalho em seu telégrafo. Passava o dia jogando dominó na pracinha e reproduzindo as fofocas elaboradas por sua mulher. Ambos moravam nas modestas e pouco movimentadas instalações dos Correios.
Conhecedora, como poucos, do código morse, transformava facilmente em palavras o tintilar do aparelho telegráfico. Sabia o teor de todos os telegramas transmitidos e recebidos. Sem o menor pudor, abria, no bico da chaleira, as cartas que por lá chegavam. Conhecia a vida de todos. Anotava quem e quantas vezes comparecera ao confessionário. Não excluía de sua língua ferina um só morador. Mais repreendida que perdoada, consumia seu tempo de confissão falando dos pecados alheios. Raramente revelava os seus próprios. O pior é que suas maledicências muitas vezes eram confirmadas, nas confissões dos citados.
Com o tempo, Doginho julgara até gentil a alcunha “chifrolândia” para Barro Seco. Lamentava e entristecia-se com o despudor social da comunidade. Ocorria até “swing”, troca de casais consentida. Tentou de tudo para implantar a moral e os bons costumes. Lia, insistia e pregava as passagens bíblicas sobre Sodoma e Gomorra. Embora não achasse muita graça nos tradicionais encontros de casais com Cristo, organizou e promoveu um desses encontros, onde predominaram palestras e orações pela unidade familiar.
Os bons modos não duraram mais que uma semana.
Doginho, para tristeza geral dos paroquianos, caiu de cama e veio a falecer precocemente. Não sem antes, no leito de morte, confidenciar a Nezinha que, junto a Deus, ficaria de olho em seus paroquianos. Recomendaria o castigo aos pecadores e a misericórdia aos puros e arrependidos.
Nezinha era, por demais, temente a Deus. Quando lhe chegavam aos ouvidos, safadezas de alguém, não deixava de lembrar e pregar as palavras de Doginho. Foi o que muito ajudou a resgatar o respeito a Barro Seco.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opçã[email protected]