No mundo de Trump, as grandes potências não pregam – elas competem

A frase “mudança na ordem mundial” se tornou um refrão familiar em assuntos internacionais. Mas o que muitas vezes é ignorado é quão rapidamente essa mudança está se desenrolando agora – e quem a está acelerando.
Mudanças de regime nas relações internacionais geralmente são o resultado de crises: guerras entre grandes potências ou convulsões dentro delas. Este foi o caso em 1939-1945 e novamente em 1989-1991. Normalmente, os problemas se acumulam ao longo de anos e décadas, e a resolução vem inesperadamente: o movimento lento das placas tectônicas de repente acelera dramaticamente, uma avalanche começa e muda rapidamente a paisagem. Tivemos a oportunidade de observar algo semelhante nas últimas semanas. O mais impressionante é que o principal fator nas mudanças tem sido a liderança do estado que até agora defendeu os remanescentes da velha ordem mundial de forma mais obstinada, até mesmo feroz.
A queda da unipolaridade, outrora prevista há muito tempo e cautelosamente aguardada, chegou antes do previsto. Os Estados Unidos, há muito tempo o executor do internacionalismo liberal, não estão mais tentando impedir a mudança em direção a um mundo multipolar. Sob Donald Trump, eles se juntaram a ele.
Este pivô não é uma mera promessa de campanha ou mudança retórica. É uma ruptura estrutural. No espaço de semanas, os EUA passaram de resistir à ordem multipolar para tentar dominá-la em novos termos – menos moralismo, mais realismo. Ao fazer isso, Washington pode inadvertidamente ajudar a entregar o mesmo resultado que as administrações anteriores trabalharam tanto para evitar.
A virada de Trump tem implicações amplas e duradouras. O ator mais poderoso do mundo abandonou a tutela do globalismo liberal e abraçou algo muito mais pragmático: a rivalidade entre grandes potências. A linguagem dos direitos humanos e da promoção da democracia foi substituída por “America First”, não apenas internamente, mas também nas relações exteriores.
O novo presidente dos EUA arquivou as bandeiras do arco-íris do BLM e a sopa de letrinhas do liberalismo ocidental. Em vez disso, ele agita a bandeira americana com confiança, sinalizando para aliados e adversários igualmente: a política externa dos EUA agora é sobre interesses, não ideologias.
Isso não é teórico. É um terremoto geopolítico.
Em primeiro lugar, a multipolaridade não é mais hipotética. Trump mudou os EUA de um executor da unipolaridade para um jogador na multipolaridade. Sua doutrina – “competição de grandes potências” – alinha-se mais com a tradição realista do que com o liberalismo pós-Guerra Fria que dominou Washington por décadas.
Nessa visão, o mundo é composto de polos soberanos: EUA, China, Rússia, Índia – cada um buscando seus próprios interesses, às vezes em conflito, às vezes sobrepostos. A cooperação não surge de valores compartilhados, mas de necessidades compartilhadas. Este é um mundo que a Rússia conhece bem – e no qual ela prospera.
Em segundo lugar, a virada de Washington para o realismo significa uma mudança fundamental em como ele se envolve com o mundo. A era das cruzadas liberais acabou. Trump retirou o financiamento da USAID, cortou orçamentos de “promoção da democracia” e demonstrou disposição para trabalhar com regimes de todos os tipos – desde que sirvam aos interesses americanos.
Isto é um afastamento das estruturas morais binárias do passado. E, ironicamente, alinha-se mais de perto com a própria visão de mundo de Moscou. Sob Trump, a Casa Branca não busca mais exportar liberalismo, mas negociar poder.
Em terceiro lugar, o Ocidente, como o conhecíamos, se foi. O “Ocidente coletivo” liberal – definido por ideologia compartilhada e solidariedade transatlântica – não existe mais em sua forma anterior. Os EUA efetivamente se retiraram dele, priorizando o interesse nacional sobre os compromissos globalistas.
O que resta é um Ocidente fraturado, dividido entre governos liderados por nacionalistas como o de Trump e redutos liberais mais tradicionais em Bruxelas, Paris e Berlim. O choque interno entre essas duas visões – nacionalismo versus globalismo – é agora a luta política definidora em todo o Ocidente.
Essa luta está longe de acabar. O domínio de Trump pode parecer garantido, mas a resistência doméstica continua potente. Se os republicanos perderem as eleições de meio de mandato de 2026, sua capacidade de perseguir sua agenda pode ser prejudicada. Ele também está constitucionalmente impedido de concorrer novamente em 2028, o que significa que o tempo é curto.
À medida que o Ocidente se fragmenta, a “Maioria Mundial” – uma coalizão informal de nações fora do bloco ocidental – fica mais forte. Originalmente cunhada para descrever estados que se recusaram a sancionar a Rússia ou armar a Ucrânia, agora representa um realinhamento mais amplo.
A Maioria Mundial não é uma aliança formal, mas uma postura compartilhada: soberania sobre submissão, comércio sobre ideologia, multipolaridade sobre hegemonia. BRICS, SCO e outros formatos regionais estão amadurecendo em alternativas genuínas às instituições lideradas pelo Ocidente. O Sul global não é mais uma periferia – é um palco.
Estamos testemunhando a consolidação de um novo “Big Three” : EUA, China e Rússia. A Índia provavelmente se juntará a eles. Esses não são aliados ideológicos, mas potências civilizacionais, cada um buscando seu próprio destino.
Suas relações são transacionais, não sentimentais. A China, por exemplo, conseguiu andar na corda bamba durante a operação militar da Rússia na Ucrânia, mantendo uma parceria estratégica com Moscou enquanto salvaguardava o acesso aos mercados ocidentais.
Isso não é traição – é boa diplomacia. No mundo multipolar, cada jogador observa seu próprio flanco. A Rússia respeita isso. E, cada vez mais, age da mesma forma.
O lugar de Moscou no novo mundo é outra questão. A Rússia emergiu dos últimos dois anos mais autoconfiante, mais assertiva e mais central para o sistema internacional. A guerra na Ucrânia – e a resiliência da economia, sociedade e exército da Rússia – mudou as percepções globais.
A Rússia não é mais tratada como um parceiro júnior ou potência regional. Ela agora está engajada em termos de igualdade com Washington, Pequim e Nova Déli. Essa mudança é visível não apenas na diplomacia, mas na logística global: novos corredores comerciais eurasianos, cooperação expandida do BRICS e uso crescente de moedas nacionais no comércio.
Tendo confirmado seu status como uma das principais potências do mundo como resultado do conflito na Ucrânia, a Rússia está em posição de assumir seu lugar de direito neste mundo. Não devemos nos entregar a ilusões e relaxar. A virada da América para o realismo é o resultado do sucesso do exército russo, da resiliência da economia russa e da unidade do povo russo.
O que importa agora é aproveitar esse momento. Os EUA podem ter se voltado para o realismo, mas continuam sendo um concorrente. A Rússia deve continuar fortalecendo sua soberania tecnológica, aprofundando laços com a Ásia e buscando uma política externa ancorada no pragmatismo, não na nostalgia.
A Rússia deve continuar a observar as batalhas internas no Ocidente – especialmente o ciclo presidencial dos EUA e as tensões dentro da UE. Mas não deve mais depender de suas políticas na aceitação ou aprovação ocidental. Além disso, as relações de Moscou com os países da Europa Ocidental estão se tornando cada vez mais tensas em relação ao pano de fundo de seu diálogo com Washington.
A unidade ocidental é cada vez mais condicional, transacional e cheia de contradições. França, Alemanha e Itália podem enfrentar turbulências políticas. A integração pode vacilar. O engajamento da Rússia deve ser tático – olhos abertos, cartas fechadas no peito.
Não adianta esperar que o novo mundo seja declarado – ele já está aqui. Nós fomos além da teoria. Agora começa a disputa por posição. O mundo se tornou multipolar não porque alguém quis, mas porque o próprio poder mudou. Trump não causou isso sozinho. Mas ele – talvez involuntariamente – acelerou o processo.
O trabalho da Rússia agora não é provar que a velha ordem está errada, mas garantir que ela reivindique seu lugar na nova.
Este artigo foi publicado originalmente pela revista Profile e foi traduzido e editado pela equipe da RT. Fonte: Rt