No período de 1960 a 2017, a história da Amazônia brasileira girou em torno da disputa por 364,8 milhões de hectares de terras públicas, a grande maioria delas coberta pela floresta tropical, o que resultou em sua destinação para diferentes entes públicos e privados. Tal disputa continua, em torno dos variados usos que deles fizeram e ainda fazem
Por Gilney Viana
Os impactos das mudanças de uso da terra e das florestas, promovidas pelos diferentes destinatários desses 364,8 milhões de hectares das terras públicas e suas tendências para o futuro imediato, podem ser visualizados do ponto de vista ecológico e climático, pela série histórica do desmatamento anual, ou do seu equivalente, das emissões de CO2.
Do ponto de vista social, humano, esses impactos podem ser vistos por vários indicadores, sendo o mais notável a série histórica de assassinatos de camponeses, seringueiros, quilombolas e outras comunidades tradicionais, e dos povos indígenas (sendo estes, neste artigo, considerados apenas quando resultantes dos conflitos em disputa pela terra).
Tais indicadores são expressões de um mesmo processo histórico e como tais devem ser enfrentadas, sem exclusões, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista político, na Agenda da Presidência da COP 30, na nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil, assim como nas resoluções da Conferência da Convenção sobre Mudanças do Clima, a se realizar em Belém, Brasil, em novembro de 2025.
O quadro abaixo revela as diferentes destinações das terras públicas de 1960 a 2017. Apesar de algumas imprecisões e superposições, os dados são suficientes para uma análise histórica e para o embasamento de decisões estratégicas.

A primeira observação se volta para a enormidade das terras públicas destinadas desde 1960 até 2017, da ordem de 364,8 milhões de hectares – fato singular no mundo contemporâneo. E a segunda se refere à ordem das destinações. Até 1960 predominaram os estabelecimentos agropecuários, com 9,31%, e até 1985, com 22,4% da área total da Amazônia Legal. 
Em 2017, reverte-se a ordem, com a destinação de 52,22% da área total da Amazônia Legal aos territórios socioambientais, contra 26,39% aos territórios dos estabelecimentos agropecuários. Esse processo histórico merece algumas observações.
Até 1960, apenas 77,7 milhões de hectares tinham sido destinados, dos quais 60% aos estabelecimentos agropecuários, enquanto às Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Projetos de Assentamento couberam apenas números simbólicos.
Embora o país tenha vivido um processo de industrialização pós Segunda Guerra Mundial, com modernização da vida urbana e um estado de direito, apesar de suas limitações, isso não aconteceu no campo, onde a política era dominada pelos grandes proprietários de terra, que não reconheciam os direitos dos povos indígenas aos seus territórios, consideravam a luta pela Reforma Agrária como atividade subversiva e a luta ambientalista como coisa de países do Primeiro Mundo. 
A economia estava assentada no extrativismo vegetal de baixo impacto ambiental, como a extração da borracha, principal produto da região, desde a segunda metade do século XIX. A pecuária, extensiva, e voltada para o pequeno mercado interno, se valia principalmente das pastagens naturais, donde o desmatamento acumulado relativamente pequeno.
Tanto o deslocamento de mercadorias quanto de pessoas dependia fundamentalmente dos rios. Mas, ao final do período, se deu o primeiro passo para superação dessa condição, com a abertura da rodovia que ligou Brasília, a nova capital do país a Belém, expondo ao desmatamento a borda oriental da floresta.
Já o período de 1960 a 1985 foi marcado pelo estado ditatorial instalado em 1º de abril de 1964, que impôs à Amazônia brasileira, um novo modo de ocupação e de economia.
A população estimada passou de 4 para 7,3 milhões de habitantes, e a área total destinada saltou de 15,5% a 34,97% do total, destacando-se os estabelecimentos agropecuários que passaram de 46,7 para 113,6 milhões de hectares, transformando-se em núcleo da nova economia e base de sustentação da nova elite dominante, o agronegócio.
Isto só foi possível, em tão curto período de tempo, em função da centralização das decisões políticas em um círculo restrito de militares e tecnocratas, imbuídos da concepção de segurança nacional que limitava a oposição legal e tratava como inimigos os movimentos sociais, principalmente do campo; ao mesmo tempo, promovia transferências graciosas de terras públicas para empresas e grandes proprietários de terras, de fundos públicos via incentivos fiscais e créditos subsidiados para empresários e, o que é fundamental, provia com infraestrutura adequada, principalmente rodovias, devassando a floresta e superando as limitações dos transportes pelos rios.
Há, contudo, três contrapontos importantes.
Primeiro, a destinação de 3,21% do total para Unidades de Conservação e 2,72% do total para Projetos de Assentamento – totalizando 29,7 milhões de hectares, compondo territórios fora da dinâmica imposta pelo agronegócio, ou seja, da reprodução do capital. Que isso tenha acontecido durante o estado ditatorial, enfrentando a repressão tanto estatal quanto empresarial é um demonstrativo do poder da resistência camponesa, da cidadania ambiental e dos direitos humanos.
Segundo, a não demarcação das Terras Indígenas revelando a continuidade de uma trava imposta pelos militares.
Terceiro, o ganho qualitativo, que foi o empoderamento da resistência indígena e indigenista, da consciência ambiental e dos direitos humanos, que vai se expressar na Constituição Federal de 1988, ao assegurar aos povos indígenas e comunidades quilombolas direito às suas respectivas terras, e declarar a Floresta Amazônica patrimônio nacional, com uso definido em lei.
Impressionantes são os dados referentes ao período 1985-2017, cujo retrato é uma aproximação da situação de 2025 e que exigem uma leitura mais profunda, aqui apenas indicada. Nesse período, 267,2 milhões de hectares de terras públicas foram destinadas, a um ritmo de 7,4 milhões de hectares/ano, enquanto no período ditatorial o ritmo foi de 4,6 milhões de hectares/ano.
As destinações socioambientais, Unidades de Conservação (21,74%), Terras Indígenas (23,05%), Projetos de Assentamento (7,28%) e Territórios Quilombolas (0,15%) cresceram extraordinariamente, totalizando 52,72% da área total da Amazônia brasileira – constituindo-se como polo anti-hegemônico ao modelo de ocupação e desenvolvimento vigente desde a ditadura militar e de anteparo eficaz à acelerada conversão da floresta em pastagens e monocultura de soja.
Embora os estabelecimentos agropecuários tenham crescido apenas de 22,04 para 26,39%, o agronegócio consolidou sua dupla hegemonia econômica e política.
Impulso importante para o salto qualitativo desse processo de modernização capitalista no campo e da hegemonia do agronegócio foram os 1.157 projetos agropecuários, florestais e madeireiros incentivados pela Sudam de 1966 a 1995, que se concentraram em 100 municípios com elevados índices de assassinatos e desmatamento. Além disso, os grandes projetos minerários, implantados por empresas estatais e/ou associadas ao capital internacional, cujo exemplo maior é o Projeto Carajás – que conformou territórios privilegiados de reprodução do capital, do desmatamento e das graves violações aos direitos humanos. 
DA DESTRUIÇÃO DAS FLORESTAS E DAS FAMÍLIAS OU DA INTEGRALIDADE DAS GRAVES VIOLAÇÕES DOS DIREITOS DA NATUREZA E DOS DIREITOS HUMANOS
A conversão da floresta tropical em pastagens e campos de monocultura foi e continua sendo o motivo central da disputa das terras públicas da parte do agronegócio, porque foi, e ainda é, o principal meio da sua reprodução ampliada.
De um lado se esforçam para ampliar a área que legalmente podem desmatar dentro dos estabelecimentos agropecuários avançando sobre as áreas de reserva e de proteção ambiental, através de alterações na legislação e anistia aos violadores da lei, a chamada expansão “porteira a dentro”; de outro, disputam as terras não destinadas, aqui quantificadas em 58,9 milhões de hectares (mas que podem atingir o dobro desta estimativa), através da chamada “regularização fundiária”; terceiro, tentam ampliar as áreas de pastagens e monoculturas em terras indígenas e projetos de assentamento, via arrendamento de terras, ou “integração”, e alteração legal do grau de proteção das unidades de conservação.
E, naturalmente, a continuidade de crédito subsidiado, isenções tributárias, renegociações de dívidas, pressão para abertura e modernização de rodovias, ferrovias, hidrovias, aumentando não apenas seus lucros, mas também a exposição da floresta ao desmatamento, e os povos originários, comunidades tradicionais e camponeses às graves violações dos seus direitos humanos.
DO DESMATAMENTO, DA EXPANSÃO DA PECUÁRIA E DA MONOCULTURA DA SOJA
O desmatamento acumulado, na Amazônia brasileira, desde os tempos coloniais até 1970 é estimado em 10 milhões de hectares; 37,6 milhões de hectares até 1985 e 78,4 milhões de hectares até 2017 (e 85,2 milhões de hectares até 2024).
Cresce o desmatamento, crescem as pastagens plantadas e o rebanho bovino, ao ponto deste aumentar sua participação do rebanho bovino nacional, de 7,1% em 1974 para 45% em 2023.
A novidade é a soja, que multiplicou por 10 o total de sua área plantada, de 1988 a 2023, constituindo-se em potente agente da conversão tanto da floresta como de pastagens para área de monocultura de soja.

ASSASSINATOS NA LUTA PELA TERRA, ELEMENTO ESTRUTURAL DO DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA A PARTIR DE 1964

De 1961 a 2024 foram assassinados, na Amazônia brasileira, 2.297 camponeses, indígenas, quilombolas, seringueiros e membros de outras comunidades tradicionais, em disputa pela terra, correspondendo a 65,3% do total assassinado no Brasil no mesmo período e pela mesma motivação.
Curva dos assassinatos no campo, Amazônia brasileira (1961-2024)

Contudo, uma melhor compreensão do acontecido, particularmente do pico de 1979 a 1988, exige uma periodização dos acontecimentos político-institucionais, do quadro abaixo.

Nota-se que os assassinatos em disputa pela terra tornaram-se elemento estrutural do modo de ocupação e economia da Amazônia Legal imposto pela ditadura militar, agravado no período de transição e continuado no período democrático, como aconteceu com o desmatamento.
A transição do estado ditatorial para o estado democrático de direito, no caso brasileiro, teve dois subperíodos distintos: o da “transição militar”, de 15/03/1979 a 15/03/1985 (governo do general Figueiredo), que finda a ditadura propriamente dita; e de 15/03/1985 a 05/10/1988, quando se conclui a Assembleia Nacional Constituinte e se proclama a Constituição Federal de 1988 e formalmente se reconhece o retorno ao estado democrático de direito, ainda em pleno mandato do líder civil José Sarney, eleito pelas regras impostas pela ditadura militar.
Exatamente durante esse período de 10 anos (1979-1988) ocorreu uma verdadeira guerra no campo, que deixou 1.551 assassinatos em todo o país e 991 na Amazônia Legal. Não por acaso.
A partir de 1979, com a pressão social e política (particularmente com o protagonismo da classe trabalhadora urbana) e a crise do regime, conquista-se a Anistia Política e a revogação do Ato Institucional nº 5, e se estabelece um ambiente de crescentes liberdades políticas nas cidades, o que não acontece no campo.
Após anos de lutas localizadas, ao final do período de transição militar (1984-1985), os camponeses, indígenas, seringueiros e trabalhadores rurais assumem uma dimensão política e organizativa nacional, com o reposicionamento político da Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) e o surgimento de novas formas de organização como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Conselho Nacional de Seringueiros (CNS); e centenas de movimentos locais – todos com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) – que associam a defesa do direito à terra e à conquista dos direitos democráticos, enfrentando os antigos (latifundiários) e novos (empresários) senhores de terra que recorreram à violência ilegítima através de milícias e pistolagem, abertamente apoiada por suas instituições e lideranças representados pela União Democrática Ruralista.

A RELAÇÃO DIRETA ENTRE DESMATAMENTO E ASSASSINATOS NO CAMPO, NA AMAZÔNIA BRASILEIRA, DOS GRANDES AGENTES E DAS PESSOAS ATINGIDAS

Os dados abaixo indicam uma relação direta entre expansão da área de desmatamento e crescimento do número de assassinatos no campo em disputa pela terra, na Amazônia Legal, no período de 1970 (a partir da existência de estimativas de desmatamento) a 2024.


Pela tabela acima nota-se um crescimento do desmatamento da ordem de 47,2 milhões de hectares, no período de 1985 a 2017, que devem ser alocados nos Estabelecimentos Agropecuários e, também, nos Projetos de Assentamento, Outras Destinações e Não Destinadas, submetidas em diferentes proporções ao desmatamento legal e ilegal.
Em relação aos agentes diretamente envolvidos nos assassinatos, a pesquisa deste autor trabalha com três categorias e suas respectivas participações relativas: agente do Estado, 11,6% do total; agente do Estado em conjunto ou conivência com agente privado, 7,5%; agente privado, 43,7% do total; e 37,1% sem informação.
Já entre as vítimas: camponeses, 1.440; indígenas, 347; sem-terra, 209; assalariados rurais, 102; assentados, 82; garimpeiros, 56; quilombolas 22 e seringueiros, 10. E, segundo o seu papel político: presidentes de Sindicatos de Trabalhadores Rurais, 17; dirigentes sindicais, 66; lideranças camponesas, 7; religiosos, 9; e advogados, 6.
Essa informação guarda relação com estudos recentemente publicados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro, de 2025, elaborados por um conjunto de pesquisadores e suas equipes. A obra oferece uma visão abrangente sobre os conflitos no campo, os atingidos e os agentes causadores, referentes ao período 1985-2023.
A CPT computa 14.681 ocorrências de violência contra a pessoa no Brasil, sendo 9.417 (64,1%) na Amazônia Legal. Dessas, 1.341 assassinatos (14,3%); 977 tentativas de assassinato (10,4%); 4.422 ameaças de morte (46,9%) e 2.677 prisões (28,4%) – dados que revelam graves violações dos direitos humanos, e não apenas assassinatos, o que é um traço estrutural do desenvolvimento da Amazônia brasileira.
Quanto aos causadores da violência contra a pessoa, aparecem em primeiro lugar os fazendeiros, responsáveis por 51,7% de todas as ocorrências, seguidos pelo Estado, 16,4%; empresários, 13%; e grileiros, 10,2%. As mineradoras são apontadas como responsáveis por 1,9% das ocorrências, e um conjunto de outros agentes, 6,8% do total.
DAS METAS E DA URGÊNCIA DAS AÇÕES HUMANAS PARA O ENFRENTAMENTO DA CRISE CLIMÁTICA

As séries históricas da destinação das terras públicas, do desmatamento e dos assassinatos no campo na Amazônia brasileira registram fatos que ocorreram e ocorrem no mesmo espaço e ao mesmo tempo e que guardam relações de determinação, a partir da apropriação por alguns dos bens comuns, que deveriam e devem ser de todos, e do seu uso predatório.
Na Amazônia brasileira, e provavelmente em toda a Pan-Amazônia, quiçá em todos os países nos quais existem florestas tropicais, a continuidade do desmatamento resulta em redução dos importantes serviços ecossistêmicos produzidos pela Floresta Tropical, como o balanço positivo de CO2e, a proteção da biodiversidade e o regime de chuvas.
Como no tema da substituição das fontes fósseis de energia (petróleo, carvão e gás natural) por fontes de energia renováveis, não se pode esperar isenção dos estados e das companhias petroleiras para a fixação de metas e prazos.
Ademais, o tempo da destruição, do aquecimento global e das mudanças climáticas é muito mais rápido que o tempo da regeneração da natureza e das medidas de mitigação, donde a emergência das atividades humanas contra a crise.
A não observância desses princípios pelas conferências da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre o Clima (UNFCCC, sigla em inglês) levou à aceitação de metas nacionais de redução de CO2 insuficientes dos países (“partes”) que mais emitiram no passado, e/ou mais emitem no presente, para se atingir a meta de deter a elevação da temperatura média superficial do planeta em mais 1,5ºC. Essa meta, já ultrapassada, indica o fracasso do Acordo de Paris (COP 21).
São necessários, mas não bastam, o desmatamento zero e a abolição do uso dos combustíveis fósseis, antes dos seus respectivos esgotamentos, para enfrentar a crise climática e – menos ainda – a crise civilizatória; mas seriam passos importantes para superar este processo “destruidor das florestas e das nossas famílias”, como diz o líder camponês amazônida Chico Barbudo. 
Gilney Amorim Viana – Ambientalista. Escritor. Professor Colaborador da UnB. Conselheiro da Revista Xapuri. Capa: Ibama.


