Contra a cleptocracia há uma revolução em curso. Vamos mais fundo!

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Por Luiz Flávio Gomes*

Cleptocracia, literalmente, significa governo de ladrões (cleptos = ladrões; cracia = governo ou poder).

Nada mais equivocado que supor que esses ladrões façam parte (todos eles) somente do Estado. Isso não é correto. Também há muitos ladrões graúdos fora dele, que historicamente se enriqueceram apropriando-se dos bens, concessões, benefícios, privilégios, favores ou proteção do Estado, que constitui o epicentro do conceito de cleptocracia, entendida como a roubalheira ou o enriquecimento favorecido a partir do acesso ao poder do Estado. Os atores dessa bandalheira geral são, portanto, públicos e privados.

Aliás, a confusão anárquica entre o público e o privado é da essência do Estado brasileiro (e da nossa História). As finanças do Estado sempre foram e continuam sendo a origem (a vaca leiteira) de muitas fortunas nababescas, sendo várias delas construídas à margem da lei e da moralidade. Qualquer tipo de revolução séria no Brasil passa pela tarefa de desatar esse nó.

“Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes” (Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil). A escravidão, que tanta riqueza gerou para alguns setores das elites bandidas nos séculos XVI a XIX, disso constitui exemplo insuperável. Quem faz fortuna explorando os músculos de outra pessoa (escravizada) é bandido.

No princípio aqui se tentou implantar a cultura europeia (que já tinha abandonado a escravidão). Esse projeto, desde logo, não deu certo. A formação do Brasil não foi uma réplica de Portugal ou da Espanha. Em muitos sentidos aqui se desenvolveria um tipo de sociedade singular, muito mais frouxa do ponto de vista da lei, da ordem e da moral vigentes no continente europeu.

É essa frouxidão legal, institucional e moral que mora no coração dos regimes cleptocratas, que se caracterizam pela impunidade daqueles que se enriquecem ilicitamente.

Em busca de uma referência explicativa na formação do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil) centra no personalismo a marca caracterizadora do povo ibérico (“cada qual se julga filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes”). Nossas elites dirigentes, consequentemente, seriam personalistas. Isso é correto, mas não é tudo.

Na verdade, todos os vícios que Ortega y Gasset (A rebelião das massas) enfatiza, aristocraticamente, em relação às massas impregnaram a personalidade e o comportamento das elites dirigentes no Brasil (vulgaridade, ninguém está acima delas, nem a lei, cada um faz o que bem entende, ninguém está subordinado a nada, cada um vive de acordo com seus caprichos, não há hierarquia a ser respeitada, a Justiça não pode ditar seus atos, tudo que foi conquistado é obra do seu esforço e por aí vai).

A tibieza da nossa defeituosa formação bem como de todas as instituições que foram sendo criadas no Brasil, à medida dos anseios e necessidades das elites dirigentes, é inteiramente incompatível com as organizações e associações que impliquem solidariedade e ordenação entre os povos. Não é por acaso que o Brasil é um país moderno atrasado.

Como diz o autor do famoso livro Raízes do Brasil (de 1936), “em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. É essa força exterior “respeitável e temida” (que Hobbes, no Leviatã, pioneiramente entendia ser o Estado-nação) que nunca superou o desenvolvimento da cleptocracia aqui implantada.

Há, no entanto, uma revolução da sociedade civil em curso, leia-se, uma dura oposição a “tudo isso que está aí”. A Lava Jato, desde 2014, aos trancos e barrancos, iniciou o processo formal de ruptura contra as bandalheiras e opressão das elites dirigentes cleptocratas. O eleitorado, em 2018, aprofundou a rebelião, eliminando do Parlamento dezenas de políticos (de vários partidos) envolvidos com a corrupção.

Quem vislumbrou a premente necessidade dessa revolução foi o naturalista norte-americano Herbert Smith (citado em Raízes do Brasil), que escreveu, no final do século XIX, o seguinte:

“De uma revolução é talvez o que precisa a América do Sul. Não de uma revolução horizontal, simples remoinho de contendas políticas, que servem para atropelar algumas centenas ou milhares de pessoas menos afortunadas. O mundo está farto de tais movimentos. O ideal seria uma boa e honesta revolução, uma revolução vertical e que trouxesse à tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os velhos e incapazes”.

Que essa revolução “venha placidamente e tenha como remate a amalgamação, não o expurgo, das camadas superiores (…) que ainda contam com homens [humanos] de bem”.

Essa aspiração de Herbert Smith não constitui um mero devaneio, posto que já se transformou em realidade. Já estamos com uma revolução em curso. Plácida, mas contundente e contínua. Os brasileiros, ainda dizia Smith, “estão hoje expiando os erros dos seus pais, tanto quanto os próprios erros”.

“A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas raízes”.

A vitória [da democracia liberal], afirmou Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), “nunca se consumará enquanto não se liquidem, por sua vez, os fundamentos personalistas [egoístas, mandonistas, cleptocratas, autoritários e até mesmo tirânicos] e, por menos que o pareçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vida social”.

Nossa luta tem que ter um sentido claro, afirma o mesmo autor, “que é a dissolução lenta, posto que irrevogável, das sobrevivências arcaicas, que o nosso estatuto de país independente até hoje não conseguiu extirpar”.

É preciso revogar a velha ordem colonial e patriarcal, “com todas as consequências morais, sociais e políticas que ela acarretou e continua a acarretar”. Vamos mais fundo nessa nossa revolução!

*Luiz Flávio Gomes, jurista e criador do movimento Quero Um Brasil Ético. Estou no f/luizflaviogomesoficial