Condenado por negar Holocausto, influenciador alemão de extrema direita se abriga no Brasil e segue com discurso de ódio

784

Nikolai Nerling chegou ao país em novembro com visto de turista e vem fazendo vídeos em cidades do Sul; ele é alvo de vários inquéritos na Alemanha

Nilokai Nerling na cidade catarinense de Pomerode Foto: Reprodução
Nilokai Nerling na cidade catarinense de Pomerode Foto: Reprodução

Berlim — Um famoso videoblogger da extrema direita alemã está desde o início de novembro no Brasil, onde continua filmando e divulgando vídeos com discurso de ódio. Condenado na Alemanha pelo crime de negação do Holocausto, Nikolai Nerling é conhecido em seu país por um canal chamado Der Volkslehrer (O professor do povo).

— Nerling é um extremista da direita convicto com tudo o que isso implica. Ele dissemina antissemitismo, narrativas conspiratórias, nacionalismo e racismo — diz Manja Kasten, do Conselho Móvel contra o Extremismo de Direita de Berlim, uma organização que aconselha vítimas de ataques neonazistas.

Nerling , de 41 anos, viajou para o Brasil como turista, mas fez do país seu lar temporário. Na Alemanha, vários inquéritos o aguardam, segundo confirmou ao GLOBO o Ministério Público de Berlim. O porta-voz do MP, Martin Steltner, não quis responder se a Interpol seria avisada de sua presença no Brasil ou se um pedido de extradição seria apresentado. Em conversa com O GLOBO, Nerling disse temer que seja preso caso volte para a Alemanha. Por isso, completou, quer “esperar e ver no Brasil como as coisas se desenvolvem” lá.

Bloqueado no YouTube

Uma condenação em particular poderia sair cara para o blogueiro: após negar publicamente o Holocausto no memorial do campo de concentração de Dachau, ele foi condenado em fevereiro de 2018. O recurso contra a sentença do Tribunal Regional de Munique, que estabeleceu multa de € 6 mil, foi indeferido, e a condenação tornou-se definitiva em dezembro de 2021. O próprio Nerling contou já ter arcado com custos de € 30 mil só nesse caso.

Nerling trabalhou como professor em uma escola primária em Berlim, mas foi demitido em 2018. Hoje, como blogueiro de vídeo, se tornou uma figura importante da extrema direita alemã, mantendo contato com grupos neonazistas violentos. No ano passado, em um vídeo, ele zombou das nove vítimas de um ataque terrorista cometido por um neonazista na cidade de Hanau em 2020. Ele também atuou como “repórter” em protestos organizados por negacionistas do coronavírus.

Como o YouTube bloqueou o canal de Nerling várias vezes, a maioria de seus vídeos foi transferida para a página privada dele e o BitChute, um canal popular para a extrema direita mundial. Nerling também distribui seus vídeos em um canal de Telegram onde tem mais de 33 mil assinantes. Ele financia seu trabalho com doações de seus seguidores.

Quando questionado, ele não quis dizer onde está morando no Brasil. Seus vídeos mostram que ele já visitou várias cidades, especialmente no Sul. Vestido com roupas tradicionais alemãs, esteve em colônias de descendentes de alemães, jantou em restaurantes com comida alemã e entrevistou pessoas. A seus entrevistados, Nerling diz querer aprender sobre a vida e a cultura de brasileiros de ascendência alemã. A especialista Manja Kasten alerta:

— Ele define cultura de maneira excludente. Os “Lederhosen” (calça de couro tradicional no Sul da Alemanha) podem parecer bonitos, mas neles há extremismo da direita, racismo e violência contra minorias.

O ativista da ultradireita também fala de política com os entrevistados. Em um vídeo, por exemplo, ele lamenta um suposto “genocídio dos brancos”. Diz que os brasileiros de origem alemã não têm medo de falar com uma pessoa da direita porque são conservadores também.

Nilokai Nerling no vídeo postado pelo Dia em Memória às Vítimas do Holocausto, em que questiona a história do extermínio dos judeus Foto: Reprodução
Nilokai Nerling no vídeo postado pelo Dia em Memória às Vítimas do Holocausto, em que questiona a história do extermínio dos judeus Foto: Reprodução

Vídeos gravados no Brasil

A reportagem entrou em contato com duas pessoas que Nerling conheceu, um dono de restaurante e um escultor. Ambos declararam que não sabiam das posições extremistas dele. Em ao menos um caso, Nerling se apresentou como jornalista, embora não tenha credencial de imprensa. Na Alemanha, ele já foi investigado por utilizar uma credencial de imprensa falsa.

Em um vídeo, Nerling é visto removendo um grafite com a inscrição “FCK NZS” (sigla para “fodam-se nazistas”) junto com um homem. De acordo com o ativista, o vídeo foi gravado em Pomerode, em Santa Catarina. No Brasil, Nerling continuou gravando vídeos em que fala do Holocausto. No dia 26 de janeiro, véspera do Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, ele postou um vídeo dizendo que “a história do Holocausto é a história das mentiras”. Para reforçar sua tese, ele cita relatos questionados por pesquisadores, como o de que os nazistas usavam gordura de suas vítimas judias para fazer sabão. Em outro trecho, ele declara: “As palavras ‘Holocausto’ e ‘Shoah’ (em hebraico) são palavras que nos ensinam aos alemães a ter medo”. O videoblogger lamenta que qualquer pessoa que expresse dúvidas sobre a história do Holocausto seja considerada “pior que um assassino”.

Para Michel Gherman, professor de Sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Instituto Israel-Brasil (IBI), as falas de Nerling são típicas de uma nova extrema direita.

— Eles evitam a negação explícita do Holocausto e trabalham com uma certa relativização, não só do Holocausto, mas também do genocídio.

Gherman considera que algumas frases do Nerling são antissemitas e conspiratórias. Já Nerling diz que no Brasil há menos resistência de grupos antifascistas a ele e menos “repressão” das autoridades.

— As coisas de que sou acusado na Alemanha não são puníveis no Brasil — afirmou.

Porém, a reportagem mostrou trechos traduzidos do vídeo sobre o Dia em Memória às Vítimas do Holocausto ao advogado e diretor da Confederação Israelita do Brasil (Conib), Octávio Aronis.

— Se for provado que esse vídeo foi produzido no Brasil, acredito que ele cometeu um crime de ódio aqui no país, e há possibilidade de que entremos em contato com as autoridades para apurar um possível crime — disse Aronis.

Visto de turista está para vencer

A antropóloga Adriana Dias, que pesquisa o neonazismo no Brasil há 20 anos, mostrou que existem pelo menos 530 núcleos neonazistas no país, um crescimento de 270% de janeiro de 2019 a maio de 2021. Dias também observa ligações entre grupos neonazistas de vários países, entre eles Brasil e Alemanha. Indagado se pretende estabelecer contato com células neonazistas do Brasil, Nerling disse:

— Se eu encontrar alguém, talvez fale com ele. Mas não tenho a intenção de entrar em redes e me tornar politicamente ativo aqui.

De acordo com Nerling, a cultura alemã também está ameaçada no Brasil. É por isso que ele imagina que poderia trabalhar como professor em escolas alemãs no país, para dar “sua contribuição ao povo alemão”. Manja Kasten, a especialista alemã, disse esperar que o “truque” não tenha sucesso e que seja assumida uma “uma linha dura contra ele, tanto por parte da sociedade civil quanto das autoridades”.

Nerling queria viajar para o Paraguai, segundo contou. Muitos negacionistas da pandemia na Alemanha emigraram para lá, centenas só nas últimas semanas, como foi documentado recentemente pela imprensa alemã. Mas, como Nerling não é vacinado e o Paraguai endureceu suas exigências de ingresso, ele teria dificuldade de entrar no país. O videoblogger também poderia encontrar problemas no Brasil: seu visto de turista, que tem validade de 90 dias, está para vencer. Ele quer estendê-lo, mas ainda não sabe se vai conseguir, caso em que ficaria ameaçado de deportação.

*Numa primeira versão deste texto, o nome do porta-voz do Ministério Público de Berlim aparecia como Stefan Steltner. O correto é Martin Steltner. Por Niklas Franzen, especial para O GLOBO

4 COMENTÁRIOS

Comentários estão fechados.