Ricos e grandes empresas sofrem aperto regulatório e são convocados a dividir o bolo; nova fase de reformas não tem modelo único e é implementada segundo condições de diferentes regiões do país
Sem fórmula única
Apesar de a direção geral apontada por Pequim ser rígida, há espaço para implementá-la de formas variadas, de acordo com o contexto e as condições locais. Uma das principais disparidades de renda que o governo busca corrigir é a que persiste entre as áreas rurais e os centros urbanos. Por isso, um outro slogan que tem sido acoplado ao da prosperidade comum é “revitalização rural”.
No sistema econômico híbrido da China, a simbiose entre Estado e iniciativa privada mostra como o governo entra em cena para botar dinheiro no bolso dos pobres.
Perto da modesta plantação do agricultor Dai Lin fica a fábrica de azeite de oliva Xiangyu. Fundada em 1997 com capital privado, a empresa exibe nos corredores mais de 20 prêmios internacionais e tornou-se a maior da Ásia, apesar de se especializar num produto pouco usado pelos chineses e de não exportar uma gota dos 2 milhões de litros que produz por ano. Além disso, seu produto custa o dobro de um azeite importado de países famosos no ramo, como Espanha, Itália, Grécia e Portugal. Numa economia clássica de mercado, um negócio desses com baixa competitividade teria grande dificuldade em sobreviver.
Mas, na China, muitos vão em frente, principalmente em áreas pobres como Gansu, graças ao apoio do Estado, que garante encomendas e assim mantém a produção e os empregos. A contrapartida é o que pode ser incluído na ideia de prosperidade comum. Segundo o gerente-geral Wang Wuxin, a fábrica garante a subsistência de 50 mil famílias da região, além de ter financiado a construção de uma estrada do condado.
A frase esquecida de Deng
Quando o igualitarismo de Mao ficou para trás e a China deu início a sua política de abertura, em 1978, o arquiteto das reformas, Deng Xiaoping, rompeu um tabu ao dizer que “enriquecer é glorioso”, dando aval para que a iniciativa privada assumisse papel vital no desenvolvimento do país. Em outra frase famosa, Deng considerou positivo que “alguns ficassem ricos primeiro”. Num trecho menos lembrado, que agora ganha destaque, insistiu que eles deveriam então ajudar outros a também subir de vida.
O bolo cresceu de forma extraordinária, mas desigual. E embora prosperidade comum não seja um conceito novo, o governo decidiu resgatá-lo ao perceber a urgência em corrigir um problema que representa riscos de várias dimensões. De Pequim, a mensagem se espalhou pelo país. A nova palavra de ordem foi citada dezenas de vezes desde o início do ano pelo presidente até ganhar status de política oficial, na reunião de 17 de agosto. Como faz com frequência, Xi se amparou na História para promover o ideal, afirmando que ele fez parte do pensamento chinês ao longo dos tempos, de Confúcio a Mao.
Um “socialismo com características chinesas”, conforme repete o partido desde os tempos de Deng, agora com a prosperidade comum como parte do modelo de negócios das empresas privadas. Um exemplo é um hotel boutique que está em fase final de construção num pequeno vilarejo nas montanhas do sul de Gansu. Com incentivo do governo local, a empresa Lame investiu 1 bilhão de yuans (R$ 817 milhões) no projeto, que pagou não apenas o hotel para turistas endinheirados, mas a reforma de todas as casas do vilarejo. Segundo seu diretor Qian Benliang, o retorno só é esperado dentro de 15 anos. Mas as boas relações com o governo estão garantidas.
Família e coletividade
Para especialistas, até mais grave e socialmente explosiva que a concentração de renda é a desigualdade de oportunidades. Um dos principais problemas é o registro de residência (hukou), que restringe o acesso de migrantes a serviços como saúde e educação fora de suas províncias de origem. Em consequência, muitos filhos são separados dos pais que trabalham nos centros urbanos para poder frequentar escolas públicas em seus vilarejos, onde a qualidade de ensino é inferior ao das cidades.
Entre as medidas recentes adotadas pelo governo para corrigir esse desequilíbrio está a proibição de aulas particulares com fins lucrativos, sob a alegação de que elas privilegiam as famílias com maior poder aquisitivo e deixam para trás crianças que só contam com o ensino público. Mas uma das principais motivações é demográfica: permitir que as famílias poupem o dinheiro extra gasto com as atividades extracurriculares para contar com condições de terem mais filhos, ajudando assim a frear o declínio populacional.
Muitos duvidam que banir a bilionária indústria de ensino privado será capaz de eliminar a demanda numa sociedade ultracompetitiva, em que a educação é a prioridade das famílias. A mesma ideia vem sendo tentada pelo governo na Coreia do Sul há 30 anos, mas os pais sempre acharam um jeito de driblar a proibição e os cursos particulares continuam em alta.
O caráter autoritário do governo chinês permite uma interferência em áreas da vida privada que nas democracias liberais seria considerada abusiva, mas há também um aspecto cultural, que está presente não apenas na China mas em outros países de tradição confucionista da região como Coreia do Sul e Japão, observa o economista Zhang Xiaobo. São sociedades onde há mais ênfase no interesse coletivo e no cumprimento de regras, em contraste com o Ocidente, onde o mais importante são as liberdades individuais. Além disso, na China há uma atitude pragmática, afirma.