Coisas do regionalismo

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roberio-sulzAcabara de completar onze anos de idade. A perda de meu pai remeteu-me para junto da família de meu irmão Dimas, em Três Corações/MG. Antes, morava na pobre vila rural de Helvécia. Fortuitamente pegava o trem para cidades grandes, tipo Caravelas/BA, Carlos Chagas ou Teófilo Otoni/MG, sob auspícios e tutela do meu padrinho de crisma Romualdo Almeida, Chefe de Trem da Estrada de Ferro Bahia e Minas.
Outros lugares só conhecia de ouvir falar. Mal chegado ao sul de Minas, com quase nada de conhecimento dos costumes locais, fui compulsoriamente demandado a prestar exame de admissão ao ginásio, no Colégio Três Corações.
Do exame, constava, dentre outras provas, um ditado. A professora (ditadora, no caso), após de alguns avisos de não colar etc., enfatizou que a escrita tinha de ser fiel ao que ela ditasse. Iniciou e eu caprichei. Saiu qualquer coisa mais ou menos assim:
“Sob um temporal, Cailos e Maita tinham que atravessai uma velha ponte cuiva quase caindo. Com a ajuda de seu Anjo da Guaida, tomaram o caminho ceito. Chegaram em casa sãos e sarvos”.
O ditado tinha uma continuação que já não me lembro. Concluída a prova e recolhidas as folhas, apresentaram-nos cinco quadros (estampas) para dizermos qual delas correspondia ao conteúdo do ditado. Acertei na mosca. Já a conhecia de uma “folhinha-calendário”, pregada na porta de minha casa em Helvécia.
Tirei quase zero no ditado que me foi exibido com raivosas marcas de lápis vermelho nos “is” que pretendiam ser “erres”. Ainda abobalhado, nada entendia. Mais tarde aprenderia que a maioria das pessoas daquela região substituíam o “r” por “i” em palavras como porta, carne, farmácia, pronunciando-as como poita, caine, faimácia e por aí.
O bom foi que isso não impediu meu ingresso no ginásio.
Mais tarde – sempre lembrando desse desacerto – e conhecendo outros sotaques brasileiros, percebi que a letra “i” é, na maioria das vezes, a vilã desses regionalismos linguísticos. Na capital de São Paulo, por exemplo, as palavras com sufixo “ento” ou “enta” sofrem a adição de um “i” antes ou depois do sufixo. Assim a palavra apartamento é dita “apaitameinto” (também com o “r” caipira, sob som de “i”). Lamento vira “lameinto” e assim por diante.
O carioca costuma criticar com graça esse falar paulista. Mas, ele também acrescenta um inexistente “i” em algumas palavras. Por exemplo, falam “naiscer” ao invés de nascer, “picolhié” ao invés de picolé, “mais” no lugar de “mas” etc.
Outra complicação nos costumes linguísticos regionais é o uso vocal do “nh”. No Rio e na Bahia não se dá a menor bola para o “h” em certas palavras. O carioca não fala companhia nem a porrete. É “compania” (sem h). Na Bahia “menininho” só é pronunciado como “meninin  o”, pinho como “pin  o” (sem o h) e vai nessa toada.
Para a maioria dos mineiros, o “s” é a letra que mais sobressai nas conversas. Logo, sem uma boa dentadura frontal falta capricho no mineirês. O mineiro quando fala a palavra “gás” parece que ele produz um vazamento do próprio. Os “esses” dobrados das palavras multiplicam-se nas conversas mineiras. Se baianos e cariocas complicam-se com o “nh”, o mineiro simplesmente transforma o “inho” final dos diminuitivos em “im”. Assim carrinho vira “carrim”, passarinho fica “passarim” etc.
Os vícios de linguagem no Brasil não param por aí. Os paulistas iniciam qualquer conversa com um inexplicável “então”. Ao se indagar a um paulista sobre sua mãe. Ele pode responder: “então, ela faleceu”.
Porém, há um terrível vício que dói nos ouvidos. É o enfadonho uso repetitivo de “nés”. Ocorre não apenas na população menos instruída, mas até em locutores de rádio e TVs. Não posso afirmar com certeza, mas esse vício parece refletir insegurança no conteúdo da fala. Isso porque é bastante notado em despreparados narradores, professores e expositores de palestras.
Certa vez, ouvi de um apresentador de evento:
– Senhoras e senhores, né?! O presente evento, né?! trazido até nossa cidade, né…
Não se demorou a demonstrar que desconhecia o título do evento, assim como os nomes dos convidados para compor a mesa de abertura, né?!
Por fim, vale registrar os nomes dados às vogais “e” e “o” pelos conterrâneos do sul. Naquelas bandas, a letra “e”, sem a menor razão, passou a ser chamada de “ê”. O “o”, também sem qualquer justificativa, ganhou o apelido de “ô”. Essa invencionice fonética só faz provocar ruídos na tradicional soletração e na comunicação verbal em geral. São hilários os apuros por que passam apresentadores de jogos na TV que envolvem a citação verbal de letras por sulistas.
Se a justificativa para essa derivação vocálica for o som que as letras recebem na composição de certas palavras, melhor adotar o alfabeto nordestino, de lê, mê, nê, pê etc. Em suma, o som de qualquer letra isolada é o que está definido nos dicionários e nos compêndios de fonética. Nada de invencionices.
*Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico (B.Sc.) pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]