Payo Cubas, que pediu em vídeo a morte (“paredão”) de 100 mil brasileiros, foi cassado pelos seus colegas senadores em 28/11/19. Razão: caso típico de demagogo agitador que explora o ódio e a xenofobia para fazer política populista autoritária e irresponsável. Ele pertence ao Movimento Cruzada Nacional.
Por detrás da gente insana, sempre há uma bandeira abstrata defensável. Os terroristas no mundo todo sempre contam com “alguns motivos” para destruir inocentes. Tudo vira uma “boa causa” para a destruição “do outro”, mas a questão é ética (é muito rara uma situação em que se pode legitimamente matar pessoas; a legítima defesa não é uma coisa frequente).
O senador protestava contra o “desmatamento do país”. Mas não apresentou provas de nada “contra os 100 mil brasileiros”. Gravou seu vídeo ao lado de um caminhão carregado de madeira, mas as autoridades afirmaram que o ato concreto estava autorizado por lei. O presidente da associação de produtores de soja, o brasileiro Eno Michles, disse ser censurável a xenofobia e que “viemos ao Paraguai para trabalhar a convite do governo paraguaio”.
Em tempo de redes sociais odiosas, há sempre o receio fundado de que uma provocação maluca se transforme num massacre generalizado (genocídio). “Justiceiros” estão por toda parte. No Guarujá (SP), uma acusação absurda pelas redes levou ao linchamento de Fabiane Maria de Jesus, totalmente inocente.
Sem o império da lei contra todos os delinquentes (pouco importando se é de direita ou de esquerda), incluindo aqueles que não dignificam as funções públicas que exercem, o país vira anarquia (total ausência de autoridade). Os atos reiterados do senador Cubas (violências, ataques à honra das pessoas, insultos, menosprezo, apologia ao genocídio) foram crescentemente se revelando mais vergonhosos, repugnantes e abomináveis.
Em abril/19 ele já tinha sido suspenso por 60 dias da política por ter xingado legisladores e atirado um copo d’água em policiais e no ministro do Interior. Trata-se do velho mandonismo deplorável (do L’état c’est moi” ou do senhor de engenho), típico de justiceiros que confiam na impunidade e que querem “fazer justiça com as próprias mãos” (como se estivessem acima da lei e da ordem). Quando isso é feito para tirar proveito político, o ato repugnante se transforma em hediondo.
O imperativo categórico Kant dizia: Lei Universal: “Age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua vontade, em uma lei universal da natureza”.
Cubas e tantos outros políticos e funcionários públicos violentos ou corruptos, que violam a ética no exercício da função pública, são a personalização de todas as aberrações do fascismo, do autoritarismo, da intolerância ou da bandidagem cleptocrata (roubalheira).
É lamentável a existência de “autoridades delinquentes”, que abusam do seu poder, praticando atos danosos contra a população em geral ou contra vítimas concretas, sem contar o prejuízo imenso para suas respectivas instituições (ver Óscar Tuma, La Nación 2/12/19).
Sem providências legais rigorosas, dentro do devido processo, nós vamos criando “monstros”, “sheriffs” sem lei, “coronéis” ou caudilhos sem limites. Sobretudo quando outros “monstros” aplaudem as condutas violadoras da lei. Essa é uma solidariedade típica de uma sociedade suicida.
Não interessa se você é de esquerda ou de direita. Há temas em torno dos quais nós temos que unir os extremos. Um deles é o império da lei contra todos (“erga omnes”), pois do contrário teremos que reviver eternamente “a guerra de todos contra todos” (Hobbes, Leviatã, 1651).
Neste princípio do século XXI tudo está sendo questionado: o Parlamento, o Judiciário, o capitalismo, o Estado, a democracia, os governos de esquerda ou de direita, as plutocracias (elites ricaças que canalizam a riqueza do país para elas), as desigualdades aberrantes, as Universidades, o mercado, o Estado de Direito e suas liberdades, os freios e contrapesos do equilíbrio do poder, a corrupção e por aí vai. Escombros por todo lado! Poeira que obscurece a visão.
O que está ocorrendo? A velha ordem morreu e o novo ainda não nasceu. No interregno, como dizia Gramsci, muitos monstros são produzidos. Particularmente quando a ética se evapora das relações humanas/desumanas e sociais/insociais.
Nesse contexto nihilista, contestador, rebelde, de injustiças profundas, é claro que se abriu muito espaço para atos de anarquia (que pressupõe ausência de autoridade). Cada um acha que pode exercer impunemente suas excentricidades, impetuosidades, instintividades, sem nenhum tipo de coação ou reprovação. É aí que cobra sua imponência o império da lei contra todos, todos que atuam contra a justiça, contra a lei e contra a razão.
A impunidade contribui para o agravamento de qualquer tipo de delinquência, incluindo a funcional. Países lenientes com a barbárie, com a incivilidade, com a apologia da violência gratuita, sobretudo contra as minorias, pagam sempre preço muito caro. Quando atuam, porém, pode ser tarde demais.
Nem a corrupção pode ser combatida com a violência desnecessária, nem a violência pode ser escamoteada pela fraude, pela corrupção.
Os “monstros” populistas cotidianamente ultrapassam todos os limites da tolerância (esse é o caso do senador paraguaio). A democracia permite a liberdade de expressão, mas deve reprimir com rigor os abusos anti-civilizatórios, sob pena de sua própria morte. A difusão do medo e do ódio pode se transformar em terror. Esse é o grande risco.
O terror, como mostrou a Revolução Francesa, significa sangue. Isso constitui o fim do país em termos econômicos. Evapora-se a confiança. Somem os investimentos. É o colapso total e a democratização da miséria. Ninguém confia num país que se transforma em palco sanguinário, em uma ditadura, onde a vida humana é “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (Hobbes).
O final do terror, de qualquer modo, todos conhecem: também o pescoço de quem manda guilhotinar vai para a guilhotina. Robespierre, Danton, Marat…
O ex-senador é reincidente. Fez explicita incitação ao crime, falando em genocídio de 100 mil brasileiros. A desumanização dos “inimigos” (reais ou imaginários) configura falta de “decoro” (no mundo da política) assim como aberrante violação à civilização.
Após sua cassação o ex-senador disse: “Saindo do obscuro Parlamento. Rumo ao país que todos nós merecemos; a luta será lá fora; dentro é só corrupção”. Discurso da antipolítica (que tem forte apelo popular). Mais barbaridades foram prometidas e acontecerão, se as instituições, com suas luzes e sombras, não cercearem os delírios sanguinários ou autoritários dos tiranetes.
Vários senadores não votaram no momento da cassação, alegando “atropelo do processo”. Isso tem que ser apurado. Atacar com firmeza os criminosos, os violentos, os apologistas e os corruptos é algo necessário. Mas também é necessário respeitar o devido processo legal. A Constituição e a ética nos impõem esse dever. Quando não respeitado, anula-se tudo e abre-se novo processo, até que o império da lei prospere, porém, dentro da lei.
LUIZ FLÁVIO GOMES*, Professor, Jurista e Deputado Federal Contra a Corrupção.